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BERNARDO CARVALHO
"Moça num vestido velho"
É uma imagem enfática da poesia hoje, num mundo cada vez mais utilitário e consumista
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NO VÍDEO "A Marcha", de Luiz
Gustavo Dias, exibido na Pinacoteca dentro da mostra
de fotografia "Cosmos: Três Olhares
sobre a Rússia", ecoa uma frase em
russo que se repete como refrão
num videoclipe: "Começamos a viver melhor". As fotos de Maurício
Nahas, Paulo Mancini e Ricardo
Barcellos retratam o verão de 2006,
em Moscou e em São Petersburgo,
meses antes de Anna Politkovskaia,
uma das jornalistas mais combativas e críticas do regime de Vladimir
Putin, ser assassinada no elevador
do seu prédio. A julgar pelo que ela
escreveu em "Um Diário Russo", publicado no Brasil pela Rocco, o refrão do vídeo soa como uma piada de
mau gosto. A própria ambigüidade
das imagens ironiza o sentido da frase. Mas o mais terrível é o que as
imagens não vêem.
Politkovskaia escreveu sobre os
horrores da guerra na Tchetchênia;
sobre a arbitrariedade, as mentiras e
a brutalidade do Estado russo; sobre
a censura violenta e absoluta dos
meios de comunicação; sobre recrutas torturados por superiores até a
morte; sobre milionários e mafiosos
aliados do regime e sobre milionários e mafiosos ex-aliados do regime,
perseguidos, presos e assassinados,
desde que passaram a ser vistos como adversários de Putin.
O que mais espanta Politkovskaia
é a apatia política da população russa diante do abuso de poder. E a explicação, em parte retratada no vídeo e na exposição da Pinacoteca, é a
economia, a combinação peculiar do
autoritarismo de Estado com a abertura a um mundo onde o consumo é
miragem de bem-estar e liberdade.
Tanto faz o que se passa a portas fechadas, pouco importam as mentiras de gabinete e as atrocidades cometidas a quilômetros dali. Contam
apenas o poder de compra, o
outdoor, a fachada renovada a despeito da estrutura podre no interior.
Todo poder foi revertido ao mercado e ao consumo. A Rússia representa um extremo caricatural, em
parte por manter o controle e o gerenciamento dos interesses do capital, coligados a todo tipo de prática
ilícita, explicitamente nas mãos da
burocracia do Estado, enquanto em
países periféricos como o Brasil a
ameaça da dependência e a fragilidade econômica subjugam o Estado
e sua função reguladora às empresas
e à prerrogativa do lucro, às vezes
em detrimento da justiça e da verdade.
A Rússia de Putin operou um corte em relação ao caos econômico reminescente da passagem à economia de mercado, com o fim do comunismo. Mas manteve uma relação de continuidade com a arbitrariedade do Estado soviético. Por que
"começamos a viver melhor"? Porque agora consumimos. Porque, na
fachada, a Rússia se parece cada vez
mais com o Ocidente, embora siga
soviética na lógica e na truculência
política.
A frase do vídeo reflete um estado
de espírito imediatista e pragmático
que não se restringe à realidade russa. Se as empresas vão bem, então
"começamos a viver melhor", a despeito de quem (e de como) nos governa. Não há mais parâmetro absoluto de ética ou de justiça. Os fatos
devem ser examinados caso a caso.
Absoluto, só o lucro.
Uma mudança significativa desse
modo de pensar é que a poesia já não
o ameaça. O governo Putin não dará
a mínima aos versos eventuais de
um poeta contra a guerra na Tchetchênia, ou sobre o cerco e o massacre da escola de Beslan, ou sobre os
desmandos de Estado.
Não poderia ter havido destino
mais funesto do que o que foi reservado aos maiores poetas russos do
século 20, antes da queda do comunismo. Maiakóvski se suicidou. Marina Tsvetáieva também -anos depois de perder a filha menor, de inanição, e depois de o marido ser executado e a filha mais velha, presa.
Osip Mandelstam não resistiu ao
campo de prisioneiros. Anna
Akhmátova viu seus poemas serem
condenados e proibidos; amigos
próximos, assim como o ex-marido,
foram assassinados durante os expurgos e seu único filho foi preso,
mais de uma vez, unicamente por
ser seu filho. Iosif Brodskii foi perseguido, preso por "parasitismo" e forçado ao exílio.
É curioso que Anna Politkovskaia
tenha escrito sua dissertação de final de curso de jornalismo sobre
Marina Tsvetáieva, a poeta que não
acreditava na poesia com função utilitária, a serviço da política ou das
causas cívicas. Numa carta da correspondência que manteve com Boris Pasternak, autor de "Doutor Jivago", Tsvetáieva se proclama "moça num vestido velho". É uma imagem enfática da poesia hoje, num
mundo cada vez mais utilitário e
consumista, esvaziado de transcendência, onde ela já não precisa ser silenciada, pois não tem mais lugar
nem importância.
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