São Paulo, terça-feira, 14 de agosto de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BERNARDO CARVALHO

"Moça num vestido velho"


É uma imagem enfática da poesia hoje, num mundo cada vez mais utilitário e consumista

NO VÍDEO "A Marcha", de Luiz Gustavo Dias, exibido na Pinacoteca dentro da mostra de fotografia "Cosmos: Três Olhares sobre a Rússia", ecoa uma frase em russo que se repete como refrão num videoclipe: "Começamos a viver melhor". As fotos de Maurício Nahas, Paulo Mancini e Ricardo Barcellos retratam o verão de 2006, em Moscou e em São Petersburgo, meses antes de Anna Politkovskaia, uma das jornalistas mais combativas e críticas do regime de Vladimir Putin, ser assassinada no elevador do seu prédio. A julgar pelo que ela escreveu em "Um Diário Russo", publicado no Brasil pela Rocco, o refrão do vídeo soa como uma piada de mau gosto. A própria ambigüidade das imagens ironiza o sentido da frase. Mas o mais terrível é o que as imagens não vêem.
Politkovskaia escreveu sobre os horrores da guerra na Tchetchênia; sobre a arbitrariedade, as mentiras e a brutalidade do Estado russo; sobre a censura violenta e absoluta dos meios de comunicação; sobre recrutas torturados por superiores até a morte; sobre milionários e mafiosos aliados do regime e sobre milionários e mafiosos ex-aliados do regime, perseguidos, presos e assassinados, desde que passaram a ser vistos como adversários de Putin.
O que mais espanta Politkovskaia é a apatia política da população russa diante do abuso de poder. E a explicação, em parte retratada no vídeo e na exposição da Pinacoteca, é a economia, a combinação peculiar do autoritarismo de Estado com a abertura a um mundo onde o consumo é miragem de bem-estar e liberdade. Tanto faz o que se passa a portas fechadas, pouco importam as mentiras de gabinete e as atrocidades cometidas a quilômetros dali. Contam apenas o poder de compra, o outdoor, a fachada renovada a despeito da estrutura podre no interior.
Todo poder foi revertido ao mercado e ao consumo. A Rússia representa um extremo caricatural, em parte por manter o controle e o gerenciamento dos interesses do capital, coligados a todo tipo de prática ilícita, explicitamente nas mãos da burocracia do Estado, enquanto em países periféricos como o Brasil a ameaça da dependência e a fragilidade econômica subjugam o Estado e sua função reguladora às empresas e à prerrogativa do lucro, às vezes em detrimento da justiça e da verdade.
A Rússia de Putin operou um corte em relação ao caos econômico reminescente da passagem à economia de mercado, com o fim do comunismo. Mas manteve uma relação de continuidade com a arbitrariedade do Estado soviético. Por que "começamos a viver melhor"? Porque agora consumimos. Porque, na fachada, a Rússia se parece cada vez mais com o Ocidente, embora siga soviética na lógica e na truculência política.
A frase do vídeo reflete um estado de espírito imediatista e pragmático que não se restringe à realidade russa. Se as empresas vão bem, então "começamos a viver melhor", a despeito de quem (e de como) nos governa. Não há mais parâmetro absoluto de ética ou de justiça. Os fatos devem ser examinados caso a caso. Absoluto, só o lucro.
Uma mudança significativa desse modo de pensar é que a poesia já não o ameaça. O governo Putin não dará a mínima aos versos eventuais de um poeta contra a guerra na Tchetchênia, ou sobre o cerco e o massacre da escola de Beslan, ou sobre os desmandos de Estado.
Não poderia ter havido destino mais funesto do que o que foi reservado aos maiores poetas russos do século 20, antes da queda do comunismo. Maiakóvski se suicidou. Marina Tsvetáieva também -anos depois de perder a filha menor, de inanição, e depois de o marido ser executado e a filha mais velha, presa. Osip Mandelstam não resistiu ao campo de prisioneiros. Anna Akhmátova viu seus poemas serem condenados e proibidos; amigos próximos, assim como o ex-marido, foram assassinados durante os expurgos e seu único filho foi preso, mais de uma vez, unicamente por ser seu filho. Iosif Brodskii foi perseguido, preso por "parasitismo" e forçado ao exílio.
É curioso que Anna Politkovskaia tenha escrito sua dissertação de final de curso de jornalismo sobre Marina Tsvetáieva, a poeta que não acreditava na poesia com função utilitária, a serviço da política ou das causas cívicas. Numa carta da correspondência que manteve com Boris Pasternak, autor de "Doutor Jivago", Tsvetáieva se proclama "moça num vestido velho". É uma imagem enfática da poesia hoje, num mundo cada vez mais utilitário e consumista, esvaziado de transcendência, onde ela já não precisa ser silenciada, pois não tem mais lugar nem importância.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Ciclo revê maestria de Ozu e Mizoguchi
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.