São Paulo, quinta-feira, 14 de agosto de 2008

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Comida

Fome de livros

Crítico e colunistas da Folha comentam lançamentos de gastronomia da Bienal

UM PUNHADO de bons livros sobre gastronomia compensará a ausência de estrelas da área circulando pelo pavilhão de exposições do Anhembi, onde acontece a partir de hoje a 20ª edição da Bienal Internacional do Livro de São Paulo.
Entre os lançamentos nacionais, está "Com Unhas, Dentes & Cuca", em que o chef Alex Atala e o sociólogo Carlos Alberto Dória discutem a cozinha brasileira e revêem visões históricas arraigadas.
Aos estudiosos de gastronomia, outras duas boas notícias: a reedição de "Arte de Cozinha", de Domingos Rodrigues, e de "Cozinheiro Nacional". Entre os livros de receitas, estão os dos apresentadores britânicos Jamie Oliver e Nigella Lawson.
Mas nem tudo vale a pena. "Um Só Vinho", apesar da proposta interessante, decepciona. Tem falhas primárias, como errar a uva de um vinho. Leia a seguir.

"Um Só Vinho"

Obra tem idéia ótima e resultado decepcionante

JORGE CARRARA
COLUNISTA DA FOLHA

O tema empolga. Um único vinho, um único copo, uma única escolha para acompanhar a contento todas as etapas de uma refeição. Para tanto, o livro indica vinhos destinados a combinar, cada um, com um par de menus. A idéia (ótima) sofre com alguns tropeços.
Em primeiro lugar, os exemplares propostos são quase todos franceses, com vinhos como o Mondeuse da Savoia ou o Patrimônio, da Córsega -difíceis de achar no nosso mercado, dominado por rótulos chilenos, argentinos e portugueses.
Há sugestões de goles alternativos, é verdade, mas que às vezes são vagas e outras, erradas. Para substituir um Corbières, recomendam-se "vinhos da Itália, Espanha, África do Norte, Líbano, Grécia...".
Mas qual? Da Espanha, um elegante Rioja ou um robusto Priorato? Da Itália, um chianti frutado ou um tinto da Puglia?
Já no lugar de um Beaujolais (leve e frutado) sugere-se um zinfandel californiano por ser "oriundo da uva gamay beaujolais", quando aqueles tintos (encorpados e alcoólicos) são feitos com a uva que lhes dá o nome: a zinfandel.
No canto dos cardápios, o panorama não melhora. Apenas uma receita dos vários pratos propostos. A idéia não era harmonizar do aperitivo à sobremesa? Sejam as escoltas muito arriscadas (como a inédita de um Médoc com um brownie), ou não, como colocá-las em prática se a fórmula das iguarias não está lá? As escorregadas acabam transformando o entusiasmo despertado pelo título em pura decepção.


UM SÓ VINHO
Autores: Évelyne Malnic e Odile Pontillo
Tradução: Marcos Barboza e Carmem Caciaccarro
Editora: Larousse do Brasil
Quanto: R$ 49,90 (160 págs.)
Avaliação: ruim


"Com Unhas..."

Livro de Atala revê mitos da cozinha brasileira

JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA

De três anos de conversas e pesquisa nasceu o novo livro de Alex Atala, em conjunto com Carlos Alberto Dória ("Com Unhas, Dentes & Cuca").
Não tem receitas: é um esboço de tratado de gastronomia, um pouco colcha de retalhos, que busca sistematizar (de forma simples e sintética) o conhecimento moderno na área.
Mesmo quando fica nas dúvidas, é valioso, especialmente quando organiza informações históricas e dá uma visão geral sobre as técnicas culinárias tradicionais e de vanguarda.
O ponto alto é quando fala da cozinha brasileira e aproveita para rever visões históricas (a suposta ancestralidade da cozinha baiana), questionar classificações arraigadas (a divisão artificial das cozinhas "regionais") e se debruça sobre temas como o terroir nacional e a Amazônia (tradições e produtos) -algo que, mesmo com menos fôlego, honra a tradição de Câmara Cascudo.
Nas generalizações, o livro abre flancos. Ao exigir do cozinheiro uma filosofia para justificar seus pratos, embaralha o papel do artista (quase como no realismo socialista), do crítico e do público.
Ao comentar a "crise" da crítica gastronômica usa um truísmo pueril ("o mais importante para quem experimenta o prato é perceber se gosta ou não, não precisa se apoiar na opinião de alguém") que invalidaria qualquer crítica de arte, cuja real função é ajudar a enriquecer a experiência do público, não decidir por ele. Coisas que não tornam o livro menos importante e necessário.


COM UNHAS, DENTES & CUCA - PRÁTICA CULINÁRIA E PAPO-CABEÇA AO ALCANCE DE TODOS
Autores: Alex Atala e Carlos A. Dória
Editora: Senac São Paulo
Quanto: R$ 60 (252 págs.)
Avaliação: bom


"Arte de Cozinha"

Publicação influenciou nossa corte incipiente

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

"Arte de Cozinha", de Domingos Rodrigues, foi o primeiro livro de cozinha publicado em Portugal. Numa de suas edições, o prefaciador Alfredo Saramago o apresenta com muita modernidade aos portugueses, comentando que "não é possível fazer uma breve história da alimentação em Portugal sem pôr em evidência o livro do cozinheiro de Dom Pedro 2º, não só por se tratar do primeiro livro de cozinha editado em Portugal, como pela forma como nele se fixam receitas, algumas imutáveis até o tempo presente. E por meio dessas receitas é possível estudar com clareza os produtos, condimentos e temperos que as compunham, assim como é fácil analisar as tendências e usos da época, que marcaram uma viragem na forma de cozinhar, na Europa e em Portugal, no último quartel do século 17".
E no Brasil? Qual foi a importância do livro? A introdução da antropóloga Paula de Pinto e Silva é para mim a razão de ser desta nova edição, pois nos vai contar como o livro do português influenciou a nossa incipiente corte que tentava reproduzir um estilo de vida europeu. E todas essas escavações culinárias de Paula Pinto e Silva, sobre as quais podemos refletir, são de suma importância para nós brasileiros, ainda tontos à procura da nossa identidade alimentar.
O livro tem glossário e 41 receitas atualizadas por Flávia Quaresma. Ilustrado, canta com o sotaque português os chouriços mouros, os pastéis de cidrão, as tigeladas e as morcelas, receitas que já olhavam para o futuro mas também não queriam esquecer o passado.


ARTE DE COZINHA
Autor: Domingos Rodrigues
Editora: Senac Rio
Quanto: R$ 79,90 (336 págs.)
Avaliação:
ótimo



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