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LIVRO - LANÇAMENTOS
Wilson exibe o sensual de tempos passados
MARCELO PEN
especial para a Folha
A ficção moderna
é uma invenção
burguesa. Em meados do século 19,
um novo público
endinheirado, letrado, sedento de emoções, era
atraído aos jornais e revistas por
histórias seriadas que pareciam
oferecer-lhe um espelho da realidade.
Vista, quando muito, como mera diversão, esse estranho produto épico-intimista só passou a ser
objeto de estudos estéticos continuados há pouco mais de cem
anos.
Pode-se dizer que houve até
uma espécie de auge, entre os
anos 10 e 40 deste século. Nesse
período, só para citar alguns, Kafka, Joyce, Proust, Thomas Mann,
Virginia Woolf e Borges produziram suas grandes obras.
Observada de hoje, essa época
parece se revestir do brilho do ouro. Pois, a despeito de suas qualidades, como John Updike, José
Saramago e Martin Amis podem
competir com essa turma? No
Brasil, só as mulheres nos redimem. Saravá, Zulmira Ribeiro
Tavares e Hilda Hilst, que salvam
o cenário nacional da completa
desolação!
Efervescência
Como avesso dessa moeda reluzente, a crítica chamejava. Surgiam novos conceitos, terminologias, tendências, gostos. Erich
Auerbach, Leo Spitzer, Percy
Lubbock, Joseph Warren Beach e
Edmund Wilson afinavam o gosto dos leitores para uma arte em
pleno desenvolvimento. Devoravam autores e eram por eles devorados. O "Ulisses", de Joyce, por
exemplo, só se oferece por completo quando refletido nesse olhar
analítico.
Publicado em 1946, "Memórias
do Condado de Hecate", de Edmund Wilson, pega carona nessa
efervescência. Trata-se de seis relatos interligados, semi-autobiográficos, que transcorrem sobretudo entre as décadas de 20 e 30,
nas cercanias de Manhattan.
Wilson já se firmara como renomado historiador e crítico de arte,
autor de obras como "O Castelo
de Axel" e "Rumo à Estação Finlândia". Por isso, o choque que
causou, quando um tribunal de
Nova York proibiu a venda do livro por razões de obscenidade.
O fato fez a crítica centrar demais a atenção no contexto realista da obra. Updike conta como o
erotismo de "Memórias" o impressionou, quando adolescente.
Lionel Trilling chamou a quase
novela "A Princesa dos Cabelos
Dourados" de uma "história sobre a sexualidade".
Bem x mal
Não deixa de ser verdade, apesar de a sensualidade do livro hoje
não causar espécie nem à TFP.
Com efeito, o fator que dá coesão
à obra, seu motivo subjacente, é o
do velho embate entre o bem e o
mal.
A começar, é claro, pelo título,
que estampa essa tricéfala deusa
titânica. Hecate (melhor seria Hécate, em português) passou a ser
associada com os poderes subterrâneos. Teve até uma participação
rápida, como mandachuva das
bruxas, num trecho provavelmente apócrifo de "Macbeth".
No primeiro conto, "O Homem
Que Atirava nos Cágados", temos
uma versão bastante alegórica da
contenda maniqueísta. Inicia
com patos selvagens, representando o "bem", e os quelônios, o
"mal", para depois oferecer a reversão cômico-demoníaca, a serviço da prática capitalista.
Em "Ellen Terhune", a dicotomia vem a propósito da investigação metafísica sobre o retorno a
um estado ideal, de não existência, onde essas forças ainda não
teriam emergido como entidades
distintas.
Se "Os Milholland e Sua Alma
Condenada" traz uma reedição
do drama faustiano ambientado
no mundo dos clubes de livros
americanos, em "A Princesa dos
Cabelos Dourados", o palco para
as emanações sulfúricas é armado
sobre as motivações do narrador.
Na sua busca egoísta da felicidade, na sua desconfiança, seus ciúmes e sua cegueira emotiva, ele
causa dano (sem sabê-lo, mas podemos ver Wilson dando uma
piscadela para o leitor esperto) às
pessoas a quem mais ama.
Atmosfera onírica
A atmosfera onírica de "O Sr. e a
Sra. Blackburn, em Casa" encerra
a coletânea, retomando as demais
histórias. O comunismo, o nazismo, as artes e, notavelmente, os
desejos da burguesia voltam à cena, em tom de ligeiro surrealismo.
E o longo discurso em francês
do sr. Blackburn guarda mais de
uma semelhança com o diálogo
mefistofélico, elaborado em alemão arcaico, que há o centro do
"Doutor Fausto", de Thomas
Mann.
"Memórias" não é um livro destituído de defeitos, dentre os
quais um certo freudismo, um
analiticismo que por vezes trava a
narrativa, uma profusão de símbolos óbvios (marionetes, escadas, a tromba marina etc.).
São apenas pecados veniais,
muitos dos quais justificáveis. Se,
afinal, não estão à altura de sua
obra crítica, os contos de Wilson
põem-se muitos palmos acima da
nossa pobre, pobrezinha, ficção
contemporânea.
Avaliação:
Livro: Memórias do Condado de Hecate
Autor: Edmund Wilson
Tradutores: Rubens Figueiredo e
Bernardo Carvalho
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (414 págs.)
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