São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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LIVRO - LANÇAMENTOS
Wilson exibe o sensual de tempos passados

MARCELO PEN
especial para a Folha


A ficção moderna é uma invenção burguesa. Em meados do século 19, um novo público endinheirado, letrado, sedento de emoções, era atraído aos jornais e revistas por histórias seriadas que pareciam oferecer-lhe um espelho da realidade.
Vista, quando muito, como mera diversão, esse estranho produto épico-intimista só passou a ser objeto de estudos estéticos continuados há pouco mais de cem anos.
Pode-se dizer que houve até uma espécie de auge, entre os anos 10 e 40 deste século. Nesse período, só para citar alguns, Kafka, Joyce, Proust, Thomas Mann, Virginia Woolf e Borges produziram suas grandes obras.
Observada de hoje, essa época parece se revestir do brilho do ouro. Pois, a despeito de suas qualidades, como John Updike, José Saramago e Martin Amis podem competir com essa turma? No Brasil, só as mulheres nos redimem. Saravá, Zulmira Ribeiro Tavares e Hilda Hilst, que salvam o cenário nacional da completa desolação!

Efervescência
Como avesso dessa moeda reluzente, a crítica chamejava. Surgiam novos conceitos, terminologias, tendências, gostos. Erich Auerbach, Leo Spitzer, Percy Lubbock, Joseph Warren Beach e Edmund Wilson afinavam o gosto dos leitores para uma arte em pleno desenvolvimento. Devoravam autores e eram por eles devorados. O "Ulisses", de Joyce, por exemplo, só se oferece por completo quando refletido nesse olhar analítico.
Publicado em 1946, "Memórias do Condado de Hecate", de Edmund Wilson, pega carona nessa efervescência. Trata-se de seis relatos interligados, semi-autobiográficos, que transcorrem sobretudo entre as décadas de 20 e 30, nas cercanias de Manhattan.
Wilson já se firmara como renomado historiador e crítico de arte, autor de obras como "O Castelo de Axel" e "Rumo à Estação Finlândia". Por isso, o choque que causou, quando um tribunal de Nova York proibiu a venda do livro por razões de obscenidade.
O fato fez a crítica centrar demais a atenção no contexto realista da obra. Updike conta como o erotismo de "Memórias" o impressionou, quando adolescente. Lionel Trilling chamou a quase novela "A Princesa dos Cabelos Dourados" de uma "história sobre a sexualidade".

Bem x mal
Não deixa de ser verdade, apesar de a sensualidade do livro hoje não causar espécie nem à TFP. Com efeito, o fator que dá coesão à obra, seu motivo subjacente, é o do velho embate entre o bem e o mal.
A começar, é claro, pelo título, que estampa essa tricéfala deusa titânica. Hecate (melhor seria Hécate, em português) passou a ser associada com os poderes subterrâneos. Teve até uma participação rápida, como mandachuva das bruxas, num trecho provavelmente apócrifo de "Macbeth".
No primeiro conto, "O Homem Que Atirava nos Cágados", temos uma versão bastante alegórica da contenda maniqueísta. Inicia com patos selvagens, representando o "bem", e os quelônios, o "mal", para depois oferecer a reversão cômico-demoníaca, a serviço da prática capitalista.
Em "Ellen Terhune", a dicotomia vem a propósito da investigação metafísica sobre o retorno a um estado ideal, de não existência, onde essas forças ainda não teriam emergido como entidades distintas.
Se "Os Milholland e Sua Alma Condenada" traz uma reedição do drama faustiano ambientado no mundo dos clubes de livros americanos, em "A Princesa dos Cabelos Dourados", o palco para as emanações sulfúricas é armado sobre as motivações do narrador.
Na sua busca egoísta da felicidade, na sua desconfiança, seus ciúmes e sua cegueira emotiva, ele causa dano (sem sabê-lo, mas podemos ver Wilson dando uma piscadela para o leitor esperto) às pessoas a quem mais ama.

Atmosfera onírica
A atmosfera onírica de "O Sr. e a Sra. Blackburn, em Casa" encerra a coletânea, retomando as demais histórias. O comunismo, o nazismo, as artes e, notavelmente, os desejos da burguesia voltam à cena, em tom de ligeiro surrealismo.
E o longo discurso em francês do sr. Blackburn guarda mais de uma semelhança com o diálogo mefistofélico, elaborado em alemão arcaico, que há o centro do "Doutor Fausto", de Thomas Mann.
"Memórias" não é um livro destituído de defeitos, dentre os quais um certo freudismo, um analiticismo que por vezes trava a narrativa, uma profusão de símbolos óbvios (marionetes, escadas, a tromba marina etc.).
São apenas pecados veniais, muitos dos quais justificáveis. Se, afinal, não estão à altura de sua obra crítica, os contos de Wilson põem-se muitos palmos acima da nossa pobre, pobrezinha, ficção contemporânea.


Avaliação:    


Livro: Memórias do Condado de Hecate
Autor: Edmund Wilson
Tradutores: Rubens Figueiredo e Bernardo Carvalho
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (414 págs.)


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