São Paulo, Terça-feira, 14 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TEATRO

Diário revela sordidez de crítico de NY

GERALD THOMAS
especial para a Folha, em Nova York

Estou realizando um sonho embutido no fundo da alma de qualquer artista: o de folhear o diário íntimo de um crítico teatral e descobrir seu mundo macabramente destrutivo, suas fraquezas, obsessões e seus traumas. Mas o mais importante é poder penetrar o território que o crítico mais teme e onde ele mais se protege: sua subjetividade.
O diário em questão foi escrito ao longo dos 15 anos em que R.W. foi um dos críticos mais influentes de Nova York, navalhando e erguendo a vida de centenas de pessoas, desfigurando talentos latentes e defendendo mediocridades, dependendo puramente -ao que demonstra esse diário- de sua vontade ou simpatia pessoal.
A descoberta recente e ainda relativamente secreta está restrita a um círculo minúsculo de pessoas que integram a comunidade artística da "off off Broadway" e está deixando todos aqueles que lêem suas pervertidas páginas em estado de choque. R.W., morto há alguns anos, não poupa clichês em seus escritos.
Num capítulo que marca aquilo que deve ter sido o início de sua carreira de crítico, R.W. já denota seu complexo de Don Corleone. Por meio de frases banais que parecem tiradas de scripts de filmes sobre a Máfia, como, por exemplo, "vou acabar com ele...", o crítico se entrega.
Num trecho em que se refere ao diretor Andre Gregory, por exemplo (um dos introdutores do método de Grotowski em NY, na década de 70, e conhecido do público brasileiro por ter interpretado o papel-título do filme "My Dinner with Andre", de Louis Malle), o crítico demonstra sua homofobia: "Será que vou aguentar uma hora de viadagem naquele palco do Public Theater? Será que Gregory vai conseguir engrossar a voz?".
Num capítulo que diz respeito ao super-renomado gênio do teatro experimental nova-iorquino Richard Foreman, o crítico diz que vai expulsá-lo de NY e mandá-lo para o exílio. Curiosamente, Foreman, desiludido com NY no início dos anos 80, acabou indo buscar auxílio artístico em Paris, numa operação não muito bem-sucedida. Coincidência? Talvez. Mas a crueldade e perniciosidade de R.W. é monstruosa e suscita o debate sobre a arte e seus críticos.
O diário está repleto dos nomes mais conhecidos do teatro norte-americano e internacional, desde Peter Brook -sobre quem o crítico escreve: "Simpatizo com Brook, coitado, pois está velhinho. Mas não consigo conceber a idéia de sentar naquela meleca indiana", em referência ao espetáculo "Mahabharata"- até Joe Chaikin, fundador do Open Theater, que se recuperava de um grave derrame e encenava um monólogo de Beckett ("como conseguirei sobreviver àquele gaguejar e cacarejar?").
Mas a enxurrada de preconceitos de R.W. não está circunscrita somente ao teatro. A cantora Diamanda Galas também levou patadas do crítico, e o diário revela o porquê: "...Essa prostituta que insiste em ferir nossos ouvidos com seus berros histéricos quase levou um amigo meu à ruína financeira. Hoje será a minha vez!".
O que é ainda mais macabro é constatar que existe uma estratégia pessoal por trás da carreira de crítico, que visa, em primeiro lugar, proteger sua própria imagem. Num capítulo reservado a Tadeuz Kantor, mestre polonês mais conhecido pelo teatro de esculturas, R.W. escreve em seu diário: "...Sempre o defendi, mas está na hora de atacá-lo, pois os colegas da redação estão começando a desconfiar desse eterno amor".
Para quem não podia ir além do clichê de que "todo crítico é um artista frustrado" e provar a abusiva subjetividade do crítico, o diário cai também como uma luva ou uma bomba de efeito moral. E o faz, ironicamente, sobre uma comunidade conhecida por ter incorporado a severidade do discurso crítico em seu próprio exercício performático, pois foi justamente no teatro experimental dos anos 70 e 80 que brotou a filosofia que mais iria irritar a crítica. O elemento da discórdia estava na aceitação, por parte do artista, do erro e do fracasso.
Aliás, a noção de fracasso ou sucesso nunca foi, exatamente, compartilhada igualmente entre o artista e a crítica. Para o artista, o fracasso é, às vezes, uma questão de honra, e o dito sucesso não passa de uma frugalidade de fácil aceitação, tão superficial em sua essência quanto a alma daquele que quer aceitá-lo de imediato.
Fica uma pergunta: será que R.W. escreveu esse diário ao longo dessa década e meia com a intenção de ver seus escritos íntimos publicados? Será que a intenção era justamente a de denunciar a fraqueza da noção de imparcialidade da crítica? Ou será que R.W. só queria dar uma última gargalhada?
Seja como for, R.W. prova que a crítica enfrenta predisposições e preconceitos macabros e que, conscientes ou não de sua capacidade destrutiva, eles acabam por insuflar a hipocrisia, um dos mais fortes elementos no enfraquecimento geral da criatividade das artes cênicas nos últimos anos.


Texto Anterior: Estilo: Moda italiana desfila 50 anos em SP
Próximo Texto: Show: Paulinho e Toquinho se reúnem
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.