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TEATRO
Diário revela sordidez de crítico de NY
GERALD THOMAS
especial para a Folha, em Nova York
Estou realizando um sonho
embutido no fundo da alma de
qualquer artista: o de folhear o
diário íntimo de um crítico teatral e descobrir seu mundo
macabramente destrutivo,
suas fraquezas, obsessões e
seus traumas. Mas o mais importante é poder penetrar o
território que o crítico mais teme e onde ele mais se protege:
sua subjetividade.
O diário em questão foi escrito ao longo dos 15 anos em que
R.W. foi um dos críticos mais
influentes de Nova York, navalhando e erguendo a vida de
centenas de pessoas, desfigurando talentos latentes e defendendo mediocridades, dependendo puramente -ao que
demonstra esse diário- de
sua vontade ou simpatia pessoal.
A descoberta recente e ainda
relativamente secreta está restrita a um círculo minúsculo de
pessoas que integram a comunidade artística da "off off
Broadway" e está deixando todos aqueles que lêem suas pervertidas páginas em estado de
choque. R.W., morto há alguns
anos, não poupa clichês em
seus escritos.
Num capítulo que marca
aquilo que deve ter sido o início de sua carreira de crítico,
R.W. já denota seu complexo
de Don Corleone. Por meio de
frases banais que parecem tiradas de scripts de filmes sobre a
Máfia, como, por exemplo,
"vou acabar com ele...", o crítico se entrega.
Num trecho em que se refere
ao diretor Andre Gregory, por
exemplo (um dos introdutores
do método de Grotowski em
NY, na década de 70, e conhecido do público brasileiro por
ter interpretado o papel-título
do filme "My Dinner with Andre", de Louis Malle), o crítico
demonstra sua homofobia:
"Será que vou aguentar uma
hora de viadagem naquele palco do Public Theater? Será que
Gregory vai conseguir engrossar a voz?".
Num capítulo que diz respeito ao super-renomado gênio
do teatro experimental nova-iorquino Richard Foreman, o
crítico diz que vai expulsá-lo
de NY e mandá-lo para o exílio. Curiosamente, Foreman,
desiludido com NY no início
dos anos 80, acabou indo buscar auxílio artístico em Paris,
numa operação não muito
bem-sucedida. Coincidência?
Talvez. Mas a crueldade e perniciosidade de R.W. é monstruosa e suscita o debate sobre
a arte e seus críticos.
O diário está repleto dos nomes mais conhecidos do teatro
norte-americano e internacional, desde Peter Brook -sobre
quem o crítico escreve: "Simpatizo com Brook, coitado,
pois está velhinho. Mas não
consigo conceber a idéia de
sentar naquela meleca indiana", em referência ao espetáculo "Mahabharata"- até Joe
Chaikin, fundador do Open
Theater, que se recuperava de
um grave derrame e encenava
um monólogo de Beckett ("como conseguirei sobreviver
àquele gaguejar e cacarejar?").
Mas a enxurrada de preconceitos de R.W. não está circunscrita somente ao teatro. A
cantora Diamanda Galas também levou patadas do crítico, e
o diário revela o porquê: "...Essa prostituta que insiste em ferir nossos ouvidos com seus
berros histéricos quase levou
um amigo meu à ruína financeira. Hoje será a minha vez!".
O que é ainda mais macabro
é constatar que existe uma estratégia pessoal por trás da carreira de crítico, que visa, em
primeiro lugar, proteger sua
própria imagem. Num capítulo reservado a Tadeuz Kantor,
mestre polonês mais conhecido pelo teatro de esculturas,
R.W. escreve em seu diário:
"...Sempre o defendi, mas está
na hora de atacá-lo, pois os colegas da redação estão começando a desconfiar desse eterno amor".
Para quem não podia ir além
do clichê de que "todo crítico é
um artista frustrado" e provar
a abusiva subjetividade do crítico, o diário cai também como
uma luva ou uma bomba de
efeito moral. E o faz, ironicamente, sobre uma comunidade conhecida por ter incorporado a severidade do discurso
crítico em seu próprio exercício performático, pois foi justamente no teatro experimental dos anos 70 e 80 que brotou
a filosofia que mais iria irritar a
crítica. O elemento da discórdia estava na aceitação, por
parte do artista, do erro e do
fracasso.
Aliás, a noção de fracasso ou
sucesso nunca foi, exatamente,
compartilhada igualmente entre o artista e a crítica. Para o
artista, o fracasso é, às vezes,
uma questão de honra, e o dito
sucesso não passa de uma frugalidade de fácil aceitação, tão
superficial em sua essência
quanto a alma daquele que
quer aceitá-lo de imediato.
Fica uma pergunta: será que
R.W. escreveu esse diário ao
longo dessa década e meia com
a intenção de ver seus escritos
íntimos publicados? Será que a
intenção era justamente a de
denunciar a fraqueza da noção
de imparcialidade da crítica?
Ou será que R.W. só queria dar
uma última gargalhada?
Seja como for, R.W. prova
que a crítica enfrenta predisposições e preconceitos macabros e que, conscientes ou não
de sua capacidade destrutiva,
eles acabam por insuflar a hipocrisia, um dos mais fortes
elementos no enfraquecimento geral da criatividade das artes cênicas nos últimos anos.
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