São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

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O COMUNISTA MANIFESTO

Rigoroso consigo mesmo, arquiteto chega a pôr dinheiro próprio para realizar projetos alheios

Niemeyer é o desenho da generosidade

DANUZA LEÃO
COLUNISTA DA FOLHA

"Conversa de Amigos" é o título do livro que reúne a troca de cartas entre Oscar Niemeyer e seu projetista, José Carlos Sussekind; excelente conversa entre dois grandes amigos.
O livro, delicioso, é para ler de um fôlego só: a alquimia entre eles é tão grande -esse casamento já dura 30 anos- que as cartas parecem escritas por uma só pessoa. Falam de André Malraux, Eça de Queirós, Jean-Paul Sartre, filosofia, política, amigos, viagens, a vida em geral e até arquitetura, veja você.
Para conversar sobre o livro, marcamos um encontro no escritório de Copacabana, em frente ao mar: uma sala ampla com piso de lajotas brancas e poucos móveis -uma mesa grande com seis cadeiras, um banco de madeira e palhinha desenhado pelo próprio arquiteto, algumas cadeiras de plástico amarelo (o espaço, segundo Oscar, faz parte da arquitetura) e não muito mais. Nem um só quadro, só desenhos feitos por ele com caneta Pilot diretamente nas paredes, nem um só objeto e livros, muito livros.
Mais no fundo, um pequeno escritório, sua verdadeira toca: um sofá de lona preta, estantes abarrotadas, a prancheta, um pequeno som e alguns discos: Noel Rosa, Altemar Dutra, Nelson Gonçalves. Oscar gosta de músicas antigas de dor-de-cotovelo, sambas -sambões mesmo- e até de um pagode. Em cima da mesa de trabalho, uma grande foto: três corpos de mulheres nuas (e quando alguém perguntou de quem era a foto, se referindo ao fotógrafo, Oscar entendeu mal, achando que a questão era sobre as mulheres: "Infelizmente não conheço").
O movimento é intenso. Quando Cassiano e eu chegamos, às 10h, ele, chiquérrimo, de camisa de seda preta e fumando uma cigarrilha, já estava recebendo três jovens argentinas estudantes de arquitetura; mais tarde, no meio de nossa conversa, chegou o embaixador da Argélia com um jornalista e um fotógrafo, e a manhã seguinte seria dedicada à BBC.
A vida do mais genial arquiteto da história do Brasil, e talvez do mundo, é assim todos os dias, e Oscar -que fica de pé até que todos estejam acomodados- atende a todos com a maior gentileza.
Ele é homem de muitos amigos, e algumas de suas mais fortes características são a generosidade, a integridade e a coerência.
Fã de Garrincha e de Maradona, ele admira os que têm a liberdade de fazer de suas vidas o que bem quiserem.
Só é radical e rigoroso com ele mesmo: aos outros perdoa tudo, e acha que se cada ser humano tiver 10% de coisas positivas, já está mais do que bom.
Depois de ter feito as mais importantes obras de arquitetura do século 20, Oscar não é rico -muito pelo contrário. Quando algum amigo, ou amigo de um amigo, ou o prefeito de uma cidadezinha mais pobre pede um projeto, ele não sabe dizer não -e não cobra. Mais: põe dinheiro do seu bolso para pagar aos desenhistas e fazer as maquetes. Uma coisa, esse dr. Oscar.
Na hora do almoço, em volta de sua mesa, se acomodam diariamente amigos, netos, bisnetos; a carne de sol, presente do amigo Bira, é farta, o purê de aipim delicioso e a sobremesa, abacate com sorvete de creme, dos deuses. Que glória não foi dada a esse gênio, conhecido e famoso no mundo inteiro?
Talvez só uma -que, aliás, não falta mais. O arquiteto vai ser enredo da escola de samba Unidos de Vila Isabel, no Carnaval carioca de 2003.
Em princípio, ele não vai desfilar, mas Sussekind, para animá-lo, sugeriu que a escola reproduzisse em cima de um carro a mesa em volta da qual ele se reúne com alguns amigos nas noites de terça-feira, para falar de filosofia -com todos eles presentes.
Oscar não disse nem que sim nem que não, mas para não se desviar de sua trajetória -coisa que ele nunca fez na vida- já está desenhando, com entusiasmo juvenil, a futura quadra da Unidos de Vila Isabel.
Para variar, de graça.



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