|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O COMUNISTA MANIFESTO
Rigoroso consigo mesmo, arquiteto chega a pôr dinheiro próprio para realizar projetos alheios
Niemeyer é o desenho da generosidade
DANUZA LEÃO
COLUNISTA DA FOLHA
"Conversa de Amigos" é o
título do livro que reúne a
troca de cartas entre Oscar Niemeyer e seu projetista, José Carlos
Sussekind; excelente conversa entre dois grandes amigos.
O livro, delicioso, é para ler de
um fôlego só: a alquimia entre eles
é tão grande -esse casamento já
dura 30 anos- que as cartas parecem escritas por uma só pessoa.
Falam de André Malraux, Eça de
Queirós, Jean-Paul Sartre, filosofia, política, amigos, viagens, a vida em geral e até arquitetura, veja
você.
Para conversar sobre o livro,
marcamos um encontro no escritório de Copacabana, em frente
ao mar: uma sala ampla com piso
de lajotas brancas e poucos móveis -uma mesa grande com seis
cadeiras, um banco de madeira e
palhinha desenhado pelo próprio
arquiteto, algumas cadeiras de
plástico amarelo (o espaço, segundo Oscar, faz parte da arquitetura) e não muito mais. Nem um
só quadro, só desenhos feitos por
ele com caneta Pilot diretamente
nas paredes, nem um só objeto e
livros, muito livros.
Mais no fundo, um pequeno escritório, sua verdadeira toca: um
sofá de lona preta, estantes abarrotadas, a prancheta, um pequeno
som e alguns discos: Noel Rosa,
Altemar Dutra, Nelson Gonçalves. Oscar gosta de músicas antigas de dor-de-cotovelo, sambas
-sambões mesmo- e até de um
pagode. Em cima da mesa de trabalho, uma grande foto: três corpos de mulheres nuas (e quando
alguém perguntou de quem era a
foto, se referindo ao fotógrafo,
Oscar entendeu mal, achando que
a questão era sobre as mulheres:
"Infelizmente não conheço").
O movimento é intenso. Quando Cassiano e eu chegamos, às
10h, ele, chiquérrimo, de camisa
de seda preta e fumando uma cigarrilha, já estava recebendo três
jovens argentinas estudantes de
arquitetura; mais tarde, no meio
de nossa conversa, chegou o embaixador da Argélia com um jornalista e um fotógrafo, e a manhã
seguinte seria dedicada à BBC.
A vida do mais genial arquiteto
da história do Brasil, e talvez do
mundo, é assim todos os dias, e
Oscar -que fica de pé até que todos estejam acomodados- atende a todos com a maior gentileza.
Ele é homem de muitos amigos,
e algumas de suas mais fortes características são a generosidade, a
integridade e a coerência.
Fã de Garrincha e de Maradona,
ele admira os que têm a liberdade
de fazer de suas vidas o que bem
quiserem.
Só é radical e rigoroso com ele
mesmo: aos outros perdoa tudo, e
acha que se cada ser humano tiver
10% de coisas positivas, já está
mais do que bom.
Depois de ter feito as mais importantes obras de arquitetura do
século 20, Oscar não é rico
-muito pelo contrário. Quando
algum amigo, ou amigo de um
amigo, ou o prefeito de uma cidadezinha mais pobre pede um projeto, ele não sabe dizer não -e
não cobra. Mais: põe dinheiro do
seu bolso para pagar aos desenhistas e fazer as maquetes. Uma
coisa, esse dr. Oscar.
Na hora do almoço, em volta de
sua mesa, se acomodam diariamente amigos, netos, bisnetos; a
carne de sol, presente do amigo
Bira, é farta, o purê de aipim delicioso e a sobremesa, abacate com
sorvete de creme, dos deuses. Que
glória não foi dada a esse gênio,
conhecido e famoso no mundo
inteiro?
Talvez só uma -que, aliás, não
falta mais. O arquiteto vai ser
enredo da escola de samba Unidos de Vila Isabel, no Carnaval carioca de 2003.
Em princípio, ele não vai desfilar, mas Sussekind, para animá-lo, sugeriu que a escola reproduzisse em cima de um carro a mesa
em volta da qual ele se reúne com
alguns amigos nas noites de terça-feira, para falar de filosofia -com
todos eles presentes.
Oscar não disse nem que sim
nem que não, mas para não se
desviar de sua trajetória -coisa
que ele nunca fez na vida- já está
desenhando, com entusiasmo juvenil, a futura quadra da Unidos
de Vila Isabel.
Para variar, de graça.
Texto Anterior: Frases Próximo Texto: "Quando a vida se degrada, só a revolução" Índice
|