São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

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"Quando a vida se degrada, só a revolução"

DA COLUNISTA DA FOLHA
DO ENVIADO AO RIO

Leia a seguir trechos da entrevista com Oscar Niemeyer e José Carlos Süssekind. (DL e CEM)

Folha - O livro "Conversa de Amigos" traz as cartas trocadas entre um dos principais arquitetos do mundo e o engenheiro que o ajudou a construir boa parte de sua obra. Mas vocês acabaram não falando muito de arquitetura...
Oscar Niemeyer -
Eu sempre digo que não dou muito importância para a arquitetura. Importante são as pessoas. O dia em que a vida for mais humana, mais solidária, aí sim os prédios vão ter um feitio diferente.
José Carlos Süssekind - De início, tentei me disciplinar para servir de escada, para fazer Oscar tratar de um abecedário de temas importantes. Mas logo a conversa adquiriu sua própria dinâmica. Fizemos flashbacks, fomos até o Egito Antigo e a Renascença e voltamos. No fim, o assunto de que menos falamos foi arquitetura e engenharia.

Folha - Na correspondência de vocês, que tratou de tantos temas, de Eça de Queirós até cosmologia, existe um assunto sempre presente que é a crítica ao capitalismo, não?
Niemeyer -
O regime capitalista nunca nos abriu uma brecha para o mundo melhor que queremos. Existe nele aquela coisa americana em cima da gente. Sobra pouco. Eu tenho que me manifestar.
Antes das eleições me perguntaram quem eu queria para presidente e disse que ou o (Leonel) Brizola, porque é um batalhador, ou o (João Pedro) Stédile, que é do único movimento importante no Brasil de hoje, o MST.

Folha - O sr. está apoiando nesta eleição o Ciro Gomes. Como o sr. está vendo o processo eleitoral?
Niemeyer -
Nestas eleições, estou sem o entusiasmo dos outros tempos. Não estou muito animado porque eu acho que ninguém vai resolver o problema. Um candidato bom até pode melhorar, como foi o Juscelino, mas a miséria continua, a discriminação continua. Acho que tem que mudar o regime. Não posso ver o que vai acontecer no Brasil com otimismo, entusiasmo, se eu tenho só o Ciro. Sinto falta do Partido Comunista Brasileiro ter mais espaço na TV para falar suas idéias. Nós queremos virar a mesa, mudar o mundo.

Folha - O sr. escreveu que é favorável à revolução.
Niemeyer -
Eu sempre digo que quando a vida se degrada e a esperança sai do coração dos homens, só a revolução.

Folha - Armada?
Niemeyer -
Se for preciso, sim. Se invadissem a Amazônia, por exemplo, é claro que sim. Se a soberania for ofendida vamos todos nos unir. E aí, quem sabe? Não que queiramos a noite para aparecer o dia, queremos melhorar, acabar com a miséria, com a discriminação social.
Nós precisamos usar aqui o exemplo do Fidel. Um país que era completamente desmoralizado, colônia americana. Um grupo se reuniu, foi para montanha, depois veio a revolução. Você vai lá e ele está no meio do povo. É um sujeito muito bom, é um líder da América Latina.
Ele veio uma vez aqui de noite. Quando ele foi embora, o elevador enguiçou. Então, ele teve de entrar num apartamento para pegar o outro. Imagine o casal no apartamento ao lado quando abriu a porta e viu o Fidel.

Folha - O sr. se considera esperançoso com o comunismo?
Niemeyer -
Sim. O que se passou na União Soviética foi um acidente de percurso. Outro dia veio um soviético falar comigo. Perguntei a ele o que ele pensava de Stálin. Ele disse que estava de acordo com tudo o que ele fez. De modo que a idéia não acabou. Está no ar.
Süssekind - Uma coisa sobre a qual escrevemos muito, e na qual concordamos os dois, é que queríamos que os governantes brasileiros fossem nacionalistas. Não no sentido fascista, mas queríamos alguém nacionalista. Vai ser preciso. Seja lá quem for pegar o país terá a dívida enorme, além de toda a pressão da Alca, tema bem presente nas nossas cartas.

Folha - O sr. preferia uma ditadura ao nosso regime atual?
Niemeyer -
O Juscelino fez um governo bom. O momento com uma possibilidade real de mudança foi o do Jango, mas aí tiraram ele. Acho que o presidente não precisa ser fantástico. Tem de ser sensato, patriota, nacionalista, corajoso, generoso e se cercar de gente competente. As soluções devem ser tomadas em conjunto.

Folha - Qual o balanço que o sr. faz do governo FHC?
Niemeyer -
Acho que ele é um sujeito inteligente, mas ele se adaptou, não sei porquê. Ele teve momentos da vida nos quais admirava o Lênin, o Marx. Depois não sei o que aconteceu. Mas eu não gosto de criticar as pessoas. Eu sempre digo que as pessoas têm sempre um lado bom. Outro dia um amigo disse que Lênin dizia que bastava 10% de qualidades boas para o sujeito ser bom.
Süssekind - Oscar adorou isso. Com isso, ele encaixou a todos.

Folha - Como foram os encontros que o sr. diz no livro que teve com a guerrilha colombiana, em 2001?
Niemeyer -
Do governo eu não posso dizer, porque eu tenho certeza que eles estão com a razão. Eu acho que essa campanha contra a droga devia terminar com a oficialização da venda de droga. Eu acho que cada um tem de tomar suas decisões sobre droga. Eu não tenho nada contra isso.

Folha - O sr. já tomou droga?
Niemeyer -
Não... (silêncio). Só lança-perfume. Mas acho que quem quer tomar, toma. A vida não é tão importante assim para não se poder fazer nada.

Folha - O sr. tem fama de já ter sido boêmio...
Niemeyer -
Ah, já fui, e muito. Quando eu fui para Brasília, por exemplo, não levei só intelectuais. Levei um amigo que estava na pior. Levei um médico que não sabia nada de medicina, mas era divertido. Eu sabia que de noite eu não ia ficar discutindo arquitetura. Eu queria era conversar, beber, tomar um porre.

Folha - O sr. parece desprendido materialmente. O sr. não tem ou teve nenhum sonho de consumo?
Niemeyer -
Não. Ninguém sabe, mas este escritório está hipotecado. Houve um problema com o Imposto de Renda. São R$ 180 mil. Fiz um acordo com a Receita e vou pagar R$ 10 mil por mês. Meu avô foi ministro do Supremo por muitos anos e morreu sem nada. Estou muito satisfeito. Já disse que teria vergonha de ser um homem rico.

Folha - Mas como o sr. não ficou rico depois de mais de 500 obras, boa parte delas monumentais?
Süssekind -
A metade do que ele fez, ele não cobrou. A metade que ele cobra, ele cobra a metade.

Folha - Se o sr. não precisasse do dinheiro parava de trabalhar?
Niemeyer -
Escolheria mais. Trabalho porque tenho casa, família, tenho muito gente que eu ajudo. Tenho que continuar, tenho que trabalhar, não tenho dinheiro.

Folha - Em quantos projetos o sr. está envolvido hoje em dia?
Niemeyer -
Tem um monte de projetos. São umas dez, 12 coisas diferentes. Os prédios do Caminho Niemeyer, em Niterói (RJ), são vários. Tem ainda um museu que estou fazendo com Süssekind no Paraná que vai ser espetacular. Não digo em importância não, é porque é uma obra complicada.

Folha - Quanto mais complicada vocês gostam mais, não?
Süssekind -
Eu gosto. Quer dizer, as coisas do Oscar sempre são complicadas no atacado. Porque ele tem horror do complicado ao varejo, de fazer uma varandinha, um recortadinho. Os prédios dele são complicados, mas com um problema só. E ele mostra que um projeto para ser monumental não precisa ter sei lá quantos metros e custar caríssimo. O museu de Niterói, por exemplo, que não tem coisa mais badalada, custou R$ 5 milhões. O Guggenheim que vão fazer aqui custa US$ 150 milhões.

Folha - E qual a opinião do sr. sobre o Guggenheim que querem fazer no Rio?
Niemeyer -
Nunca falei nem quero falar mal de colegas.

Folha - E do Rio de hoje, o que o sr. pode falar?
Niemeyer -
Esses dias eu recebi um livro de fotografias antigas da cidade. Tem ela no passado e agora. Dá a impressão de que a cidade de antes era mais feliz, de acordo com a natureza, a praia respeitada, a encosta também.

Folha - E Brasília, o sr. tem ido lá?
Süssekind -
Não. Não gosto. Prefiro ficar no meu canto. Brasília sofreu a parte de arquitetura das pequenas ruas. Tem muito anúncio nas paredes, por exemplo. No meu tempo de Juscelino parávamos o carro e tirávamos tudo.

Folha - O sr. já se arrepende de algo que fez em arquitetura?
Niemeyer -
Só do prédio das Nações Unidas, em Nova York. Eu fiz um projeto e depois aceitei a idéia de Le Corbusier de mudá-lo. Não queria, mas aceitei.
Süssekind - Ele pecou por generosidade. Tem uma história nas cartas de que uns anos mais tarde o Le Corbusier encontrou com ele e falou: "Oscar, como você é generoso", em referência a essa mudança no projeto.

Folha - O Süssekind diz que sua catedral de Brasília é a síntese da arquitetura do século 20. Que as catedrais costumam ser rebuscadas e a sua não tem coluna, laje, pilar nem viga. O sr. também fez outros templos importantes. Ateu declarado, o sr. não tem nenhuma crença religiosa?
Niemeyer -
Não, para mim é ilusão. Mas não sou contra o povo ter um religião.
Süssekind - É a frase do Mozart, não é, Oscar? Se houver uma vida depois da morte vai ser uma surpresa gratíssima, não é?
Niemeyer - É lógico.


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