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WALTER SALLES
Homenagem a uma atriz que partiu cedo demais
Não sei se você teve o prazer de vê-la em filmes como
"Naked", de Mike Leigh, ou "Ondas do Destino", de Lars von Trier.
Era uma atriz de uma inteligência e de uma intuição fora do comum, de uma extraordinária integridade.
Desprezava o estrelato, o que estava na moda, a purpurina. Não
tinha medo de nada. Era capaz
de aceitar o papel principal de um
filme rodado em digital, com uma
equipe de três pessoas. E de abandoná-lo, ao perceber que o projeto
ia na direção oposta à aventura
experimental que lhe havia sido
proposta.
Começou no teatro, mas foi no
cinema que deu vida aos personagens que iriam ficar inscritos na
memória de toda uma geração.
Como a jovem punk de "Naked", a
mulher neurótica de "Garotas do
Futuro", a jovem tiranizada pela
religião em "Ondas do Destino"
ou, mais recentemente, a jornalista de "Terra de Ninguém", de Danis Tanovic.
Gostava de trabalhar com diretores estreantes como Tanovic,
adorava se aventurar em territórios não explorados. Procurava o
risco, mas elegia o que queria fazer com lucidez e discernimento.
Numa época em que muitas vezes aquilo que sobressai é a performance sublinhativa e a histeria da interpretação, ela representava justamente o oposto dessa
tendência gongórica. Não era demonstrativa e tinha horror à teatralização do cinema. Seus personagens, ao contrário, eram contidos -e nem por isso menos densos ou tridimensionais.
Foi uma rara atriz de cinema.
Mas a vida, as pessoas que ela
amava, eram-lhe mais importantes que os filmes. No início do ano,
estava feliz em fazer o novo longa
de von Trier. Ao chegar para a rodagem na Dinamarca, soube que
o pai tinha adoecido na Inglaterra. Pediu imediatamente para
sair do filme e voltou para cuidar
dele.
Era solidária como poucas pessoas o são. Dava mais atenção aos
outros do que a si mesma. Morreu
no último sábado, vítima de uma
pneumonia que não foi detectada
a tempo. Seu nome era Katrin
Cartlidge. Tinha 41 anos.
Tive o privilégio de conhecê-la
há exatos quatro anos. Foi no Festival de Telluride, organizado por
outro amante do cinema independente, Tom Luddy. Katrin tinha vindo apresentar "Claire Dolan", filme de Lodge Kerrigan em
que faz o papel principal, o de
uma prostituta. Outra interpretação ao mesmo tempo seca e luminosa, em que força e fragilidade,
dois sentimentos aparentemente
antagônicos, conviviam no mesmo personagem.
Veio ver "Central do Brasil" nesse mesmo festival, em companhia
do jovem ator inglês com quem
vivia, Peter. Acabamos todos ficando amigos e nos encontramos
várias vezes nesses últimos anos.
Sempre falava de um filme que
queria fazer, inspirado em uma
imagem que lhe era recorrente: a
de uma mulher que se perdia com
uma mala que não lhe pertencia.
Junto com outros amigos, imaginava um filme criado e realizado
de forma coletiva.
Corta. O telefone toca na casa
alugada em que estou em Buenos
Aires. É uma chamada de Londres. A pessoa do outro lado da linha mal consegue falar.
Desligo o telefone. Na parede à
minha frente, há um convite para
uma exposição, deixado pela inquilina anterior. O convite contém a foto de um quadro. Nele,
uma mulher espera, uma mala a
seu lado. Não sei se está perdida
ou não. Só sei que nós, que estamos fora desse quadro, parecemos um pouco mais perdidos do
que antes.
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