São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

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WALTER SALLES

Homenagem a uma atriz que partiu cedo demais

Não sei se você teve o prazer de vê-la em filmes como "Naked", de Mike Leigh, ou "Ondas do Destino", de Lars von Trier. Era uma atriz de uma inteligência e de uma intuição fora do comum, de uma extraordinária integridade.
Desprezava o estrelato, o que estava na moda, a purpurina. Não tinha medo de nada. Era capaz de aceitar o papel principal de um filme rodado em digital, com uma equipe de três pessoas. E de abandoná-lo, ao perceber que o projeto ia na direção oposta à aventura experimental que lhe havia sido proposta.
Começou no teatro, mas foi no cinema que deu vida aos personagens que iriam ficar inscritos na memória de toda uma geração. Como a jovem punk de "Naked", a mulher neurótica de "Garotas do Futuro", a jovem tiranizada pela religião em "Ondas do Destino" ou, mais recentemente, a jornalista de "Terra de Ninguém", de Danis Tanovic.
Gostava de trabalhar com diretores estreantes como Tanovic, adorava se aventurar em territórios não explorados. Procurava o risco, mas elegia o que queria fazer com lucidez e discernimento.
Numa época em que muitas vezes aquilo que sobressai é a performance sublinhativa e a histeria da interpretação, ela representava justamente o oposto dessa tendência gongórica. Não era demonstrativa e tinha horror à teatralização do cinema. Seus personagens, ao contrário, eram contidos -e nem por isso menos densos ou tridimensionais.
Foi uma rara atriz de cinema. Mas a vida, as pessoas que ela amava, eram-lhe mais importantes que os filmes. No início do ano, estava feliz em fazer o novo longa de von Trier. Ao chegar para a rodagem na Dinamarca, soube que o pai tinha adoecido na Inglaterra. Pediu imediatamente para sair do filme e voltou para cuidar dele.
Era solidária como poucas pessoas o são. Dava mais atenção aos outros do que a si mesma. Morreu no último sábado, vítima de uma pneumonia que não foi detectada a tempo. Seu nome era Katrin Cartlidge. Tinha 41 anos.
Tive o privilégio de conhecê-la há exatos quatro anos. Foi no Festival de Telluride, organizado por outro amante do cinema independente, Tom Luddy. Katrin tinha vindo apresentar "Claire Dolan", filme de Lodge Kerrigan em que faz o papel principal, o de uma prostituta. Outra interpretação ao mesmo tempo seca e luminosa, em que força e fragilidade, dois sentimentos aparentemente antagônicos, conviviam no mesmo personagem.
Veio ver "Central do Brasil" nesse mesmo festival, em companhia do jovem ator inglês com quem vivia, Peter. Acabamos todos ficando amigos e nos encontramos várias vezes nesses últimos anos.
Sempre falava de um filme que queria fazer, inspirado em uma imagem que lhe era recorrente: a de uma mulher que se perdia com uma mala que não lhe pertencia. Junto com outros amigos, imaginava um filme criado e realizado de forma coletiva.
Corta. O telefone toca na casa alugada em que estou em Buenos Aires. É uma chamada de Londres. A pessoa do outro lado da linha mal consegue falar.
Desligo o telefone. Na parede à minha frente, há um convite para uma exposição, deixado pela inquilina anterior. O convite contém a foto de um quadro. Nele, uma mulher espera, uma mala a seu lado. Não sei se está perdida ou não. Só sei que nós, que estamos fora desse quadro, parecemos um pouco mais perdidos do que antes.



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