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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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CRÍTICA

A TV só existe no limite da realidade

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Alguns leitores que opinaram sobre a coluna da semana passada ("O Sorriso Amarelo das Pegadinhas") acharam por bem advertir que as pegadinhas são produzidas, ou seja, que os transeuntes não estão desavisados e que recebem cachês (R$ 5 ou R$ 10) para, como dizem os cariocas, pagar mico em frente às câmeras de televisão.
Um pouco por falta de espaço, um tanto por que o assunto ali era outro, de fato a coluna não mencionou que a espontaneidade das pegadinhas é, no mínimo, suspeita.
Mas será que isso faz diferença? A armação, certamente, não elimina nem o fato de as pegadinhas mexerem com o humor mais sádico da maioria das pessoas. E, claro, agrava o dado de violência e desrespeito à dignidade -a idéia de que as pessoas recebem remuneração para fazerem papel de bobas torna tudo mais sórdido.
É que as pegadinhas pertencem a um universo televisivo em que os limites entre verdade e mentira, realidade e ficção, jornalismo e armação estão borrados. São programas, apresentadores e celebridades cuja existência depende da manipulação consciente e programática desses limites.

Representação da verdade
Aqui, o medo da violência urbana torna-se um circo de horrores em programas em que procedimentos jornalísticos ganham elementos de melodrama e filmes de ação. Lá, é a história comum de pobres amantes desencontrados que, apresentada e narrada por uma loira rica com ar compungido, assume proporções novelescas.
Adiante, a dor e o sofrimento diante de uma desgraça são postos a nu, dissecados até perderem seu sentido. O repórter que pergunta: "O que a senhora está sentindo?" para a mãe que perde o filho quando desaba o barraco quer tudo, menos a verdade -ele quer o drama, a representação da verdade.
O que é verdadeiro, sob as luzes fortes da TV, pontuado por música dramática, por narrações bombásticas, por truques mal disfarçados de câmera, por efeitos de edição reveste-se de um matiz de histeria, de teatralização que modifica seu significado.
Mas, melhor dizendo, talvez quase tudo aquilo que acontece na televisão esteja mesmo nesse território embaçado, pouco preciso entre o real e aquilo que se quer sugerir (ou impor) como real.
Dois anos atrás (é 11 de setembro no momento em que a coluna é escrita), quando os prédios do World Trade Center desabaram ao vivo diante de milhões de espectadores, uma das sensações coletivas mais marcantes, relatada em diversos depoimentos, foi a de irrealidade, de estar vendo não um fato, mas uma representação. Muitas pessoas expressaram esse efeito dizendo que a queda das torres "parecia um filme". Não havia, naquele momento, nada menos real do que a realidade.


@ - biabramo.tv@uol.com.br


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