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ERUDITO/CRÍTICA
Sinfônica NDR de Hamburgo espelha fantasia eletrizante no ar
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Era um casal como tantos outros, sentado bem ao centro
do "coro" (as cadeiras atrás da orquestra), anteontem na Sala São
Paulo. Deviam estar na casa dos
40 anos; vestidos informalmente,
ele de agasalho sintético, ela com
um lenço verde no pescoço. Um
casal como tantos outros, mas naquele momento e naquele lugar,
cinematograficamente no meio e
acima da orquestra, a atenção
concentrada dele e o sorriso embevecido dela serviam de emblemas para a escuta da Sinfônica
NDR de Hamburgo, regida por
Christoph von Dohnányi.
Só o que os sopros fizeram no final da suíte "Petruchka", de Stravinsky (1882-1971), já seria o bastante para justificar a viagem de
mil e tantas almas até a rua Mauá,
numa noite que imitava o inverno
chuvoso em Hamburgo. Era uma
fantasia eletrizante de massas sonoras no ar, um caleidoscópio de
acordes passando de um a outro
como sucessivos lados de algum
impossível poliedro. Música assim pede toda a atenção do mundo; mas seu efeito sublima qualquer análise, porque a gente, afinal, se perde no maravilhamento.
Uma concentração sorridente
não seria, também, a pior descrição para as artes do grisalho
maestro Dohnányi. Do primeiro
ao último gesto, ele rege com uma
intensidade sem exageros, dando
mostras, o tempo todo, do prazer
de estar fazendo música. Tem a
orquestra, literalmente, na palma
da mão; e os músicos -uma
companhia mista de veteranos,
músicos em meio de carreira e
moçada- parecem contar sempre com ele para seu bem-estar
musical.
De 1984 até 2002, Dohnányi foi
diretor musical da Orquestra de
Cleveland (EUA). Regente principal da Orquestra Philarmonia, em
Londres, ele assume agora a NDR.
Quem ouviu a orquestra nas visitas anteriores -em 1997, com
Herbert Blomstedt, e em 2002,
com Christoph Eschenbach- já
tinha ótimas lembranças. Tanto
melhor que a lembrança se torne,
agora, menor do que a presença.
O mesmo vale para a própria
música: composta em 1911-12, para um espetáculo dos Balés Russos de Diaghilev, "Petruchka" é
uma das partituras incontornáveis do século passado, um antimonumento modernista que só
se renova com o passar dos anos.
Na versão da NDR, a suíte fez das
continuidades a sua razão vital,
em que pesem todas as rupturas e
cortes.
Ou justamente por conta desses:
seu gesto essencial é a "parataxe",
a passagem de um assunto a outro, sem transição. Escolado desde o berço na música do século 20
-o maestro é neto do importante
compositor húngaro Ernst von
Dóhnanyi (1877-1960)- e conhecido como intérprete de mestres
contemporâneos, Dóhnanyi regeu um Stravinski fluente e luminoso, onde tudo pode se transformar em tudo, ao sabor da mirabolante narrativa.
Não é exatamente análogo ao
que se passa na "Sinfonia nš 4" de
Tchaikovski (1840-93) mas também não disfarça algum parentesco, seja de método, seja de orquestração, assumido anos mais
tarde pelo próprio Stravinski.
Tanto mais aqui, onde o precursor explora seus desesperos a partir de um cambiante tema "do
destino".
Vida
Levado a se casar por pressão
social, Tchaikovski não deu conta
da circunstância, chegando a tentar o suicídio. O casamento foi
anulado em poucas semanas.
Rendeu a ópera "Eugen Onegin" e
a "Quarta", que é uma das sinfonias mais contundentes de todo o
repertório russo e, ao mesmo
tempo, uma das mais engenhosas
e cheias de vida.
Pode não ter sido a melhor interpretação que a orquestra já deu
dessa música. Uma das trompas
teve um surto passageiro, o excelente primeiro fagote fez lindos
solos, mas anticlimaticamente desafinou uma nota-chave (logo
corrigida), aqui e ali uma entrada
poderia ter sido ainda melhor.
Mas o que se ouviu foi mais do
que o suficiente para manter sempre focada a atenção daquele moço no coro e reanimar o sorriso da
moça.
E o que dizer do timpanista, virtuose de rufos milimetricamente
bem divididos e tocando tudo de
memória? Discreto, mas alerta, à
vontade na música e fazendo arte
com gosto, ele serve de imagem
da orquestra, que se espelha no
discreto maestro para jogar uma
imagem muito melhorada sobre o
simples espelho da platéia.
Avaliação:
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