São Paulo, quarta-feira, 14 de setembro de 2005

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ERUDITO/CRÍTICA

Sinfônica NDR de Hamburgo espelha fantasia eletrizante no ar

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Era um casal como tantos outros, sentado bem ao centro do "coro" (as cadeiras atrás da orquestra), anteontem na Sala São Paulo. Deviam estar na casa dos 40 anos; vestidos informalmente, ele de agasalho sintético, ela com um lenço verde no pescoço. Um casal como tantos outros, mas naquele momento e naquele lugar, cinematograficamente no meio e acima da orquestra, a atenção concentrada dele e o sorriso embevecido dela serviam de emblemas para a escuta da Sinfônica NDR de Hamburgo, regida por Christoph von Dohnányi.
Só o que os sopros fizeram no final da suíte "Petruchka", de Stravinsky (1882-1971), já seria o bastante para justificar a viagem de mil e tantas almas até a rua Mauá, numa noite que imitava o inverno chuvoso em Hamburgo. Era uma fantasia eletrizante de massas sonoras no ar, um caleidoscópio de acordes passando de um a outro como sucessivos lados de algum impossível poliedro. Música assim pede toda a atenção do mundo; mas seu efeito sublima qualquer análise, porque a gente, afinal, se perde no maravilhamento.
Uma concentração sorridente não seria, também, a pior descrição para as artes do grisalho maestro Dohnányi. Do primeiro ao último gesto, ele rege com uma intensidade sem exageros, dando mostras, o tempo todo, do prazer de estar fazendo música. Tem a orquestra, literalmente, na palma da mão; e os músicos -uma companhia mista de veteranos, músicos em meio de carreira e moçada- parecem contar sempre com ele para seu bem-estar musical.
De 1984 até 2002, Dohnányi foi diretor musical da Orquestra de Cleveland (EUA). Regente principal da Orquestra Philarmonia, em Londres, ele assume agora a NDR. Quem ouviu a orquestra nas visitas anteriores -em 1997, com Herbert Blomstedt, e em 2002, com Christoph Eschenbach- já tinha ótimas lembranças. Tanto melhor que a lembrança se torne, agora, menor do que a presença.
O mesmo vale para a própria música: composta em 1911-12, para um espetáculo dos Balés Russos de Diaghilev, "Petruchka" é uma das partituras incontornáveis do século passado, um antimonumento modernista que só se renova com o passar dos anos. Na versão da NDR, a suíte fez das continuidades a sua razão vital, em que pesem todas as rupturas e cortes.
Ou justamente por conta desses: seu gesto essencial é a "parataxe", a passagem de um assunto a outro, sem transição. Escolado desde o berço na música do século 20 -o maestro é neto do importante compositor húngaro Ernst von Dóhnanyi (1877-1960)- e conhecido como intérprete de mestres contemporâneos, Dóhnanyi regeu um Stravinski fluente e luminoso, onde tudo pode se transformar em tudo, ao sabor da mirabolante narrativa.
Não é exatamente análogo ao que se passa na "Sinfonia nš 4" de Tchaikovski (1840-93) mas também não disfarça algum parentesco, seja de método, seja de orquestração, assumido anos mais tarde pelo próprio Stravinski. Tanto mais aqui, onde o precursor explora seus desesperos a partir de um cambiante tema "do destino".

Vida
Levado a se casar por pressão social, Tchaikovski não deu conta da circunstância, chegando a tentar o suicídio. O casamento foi anulado em poucas semanas. Rendeu a ópera "Eugen Onegin" e a "Quarta", que é uma das sinfonias mais contundentes de todo o repertório russo e, ao mesmo tempo, uma das mais engenhosas e cheias de vida.
Pode não ter sido a melhor interpretação que a orquestra já deu dessa música. Uma das trompas teve um surto passageiro, o excelente primeiro fagote fez lindos solos, mas anticlimaticamente desafinou uma nota-chave (logo corrigida), aqui e ali uma entrada poderia ter sido ainda melhor. Mas o que se ouviu foi mais do que o suficiente para manter sempre focada a atenção daquele moço no coro e reanimar o sorriso da moça.
E o que dizer do timpanista, virtuose de rufos milimetricamente bem divididos e tocando tudo de memória? Discreto, mas alerta, à vontade na música e fazendo arte com gosto, ele serve de imagem da orquestra, que se espelha no discreto maestro para jogar uma imagem muito melhorada sobre o simples espelho da platéia.


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