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MARCELO COELHO
Melhor acreditar nos camelos
Quem entra numa sala de cinema deve estar preparado
para tudo. Eu devia ter uns 20
anos quando vi pela primeira vez
o braço de alguém ser arrancado
a dentadas: era uma refilmagem
de "Sangue de Pantera", e não sei
que personagem coadjuvante se
aproximava demasiado de Nastassia Kinski. A moça se transformava em felino e expunha à platéia atordoada o bote de uma ferocidade súbita, carnívora, castradora.
"Tenho só 20 anos", suspirei;
"que tipo de coisa me espera
quando eu for ao cinema lá pelo
ano 2000?" Várias respostas podiam ser imaginadas, mas nunca
pensei que eu acabaria acompanhando com interesse, e até mesmo com emoção, os detalhes difíceis do parto de um camelo albino.
O filme, em cartaz no Espaço
Unibanco em São Paulo, é um documentário rodado no deserto de
Gobi e mostra o cotidiano de uma
família de pastores. As primeiras
cenas parecem nos transportar
para a Pré-História: alguém colhe
magros feixes de lenha no mais
inóspito lugar da Terra, amarra a
carga ao dorso de um camelo e segue viagem para a cabana da família.
Não há narração, os pastores falam pouco, os camelos e carneiros
ainda menos. Quando não se abre
às belas visões das planícies da
Mongólia, volta e meia assaltadas
pelas tempestades de areia, a câmera de Luigi Falorni e Byambasureen Davaa se dedica a registrar, com insistente imparcialidade, rostos humanos e closes de camelos: somos todos mamíferos.
À primeira vista, "Camelos
Também Choram" quer enfatizar
um estado arcaico de harmonia
ecológica entre seres humanos e
animais. Só depois de um bom
tempo de projeção é que a presença de alguns utensílios modernos
no cotidiano dos pastores vai sendo revelada ao espectador: panelas de alumínio, uma caneta Bic
ou uma escova com cabo de plástico.
O "drama" do filme, seu principal conflito, aparece depois do
nascimento de um camelozinho
chamado Torok, que passa a ser
rejeitado pela mãe. Não adianta
correr atrás dela, suplicar auxílio
do mundo à sua volta: a camela se
recusa a amamentá-lo.
Os humanos, então, recorrem a
um rito tradicional: é preciso chamar alguém que toque violino para acompanhar certos cânticos
entoados por uma mulher da comunidade. Não há violinistas na
aldeia; duas crianças são encarregadas de buscar um na cidade
mais próxima. Depois de tanto
tempo assistindo às cenas no deserto, partilhamos a mesma surpresa das crianças ao descobrir a
existência de motocicletas, televisões e sorveteiros a uma distância
não muito grande da aldeia de
origem.
A "fábula" de "Camelos Também Choram" parece então concluir-se com exemplar legibilidade. De um lado, tenta-se preservar
um mundo de continuidade tradicional, ecológica, ritual -mães
junto de filhos, homens junto de
bichos, natureza junto de cultura.
No sentido inverso, os meninos
vislumbram um mundo de descontinuidades, de rupturas, de desequilíbrios: o desenvolvimento
tecnológico, a TV, o comércio, a
"civilização".
É claro, há muito tempo a "civilização" (neste sentido) se encontra no banco dos réus, enquanto
aumentam nossas simpatias neo-românticas pela natureza, pela
tradição e pelo tribal. É quase impossível escapar, assim, de uma
interpretação "antitecnológica",
"mamífera", desse documentário.
Algumas ambigüidades, entretanto, talvez o tornem mais complexo do que parece à primeira
vista. A situação "natural" e "harmoniosa" em que convivem pastores e animais talvez seja uma
ilusão de ótica, que o documentário por vezes ameaça desvelar.
"Camelos Também Choram"
denuncia o tempo todo a sua própria artificialidade: os efeitos sonoros são obviamente manipulados. Mais do que isso, é impossível
evitar a impressão de que certos
diálogos dos pastores foram reencenados de propósito para as câmeras.
Será que com essa ironia, esse
falseamento intencional, o documentário pretende assinalar, melancolicamente, que, naquele lugar, toda a "autenticidade" natural já foi perdida? Mas seu tom
não é melancólico: não lhe faltam
momentos de comédia sentimental, por vezes abusando de nossa
credulidade. O clímax do filme
-a cena em que um camelo
"chora"- talvez nos faça também chorar, mas tem tudo para
ser uma armadilha narrativa.
Os créditos do filme apresentam
em pé de igualdade tanto os protagonistas humanos quanto a dupla de camelos -o que, de certo
ponto de vista, parece um ato de
humor inocente e, de outro, tem
algo de perverso e derrisório. Para
nos mostrar que "camelos também choram", o filme às vezes sugere que seres humanos também
mugem; o culto excessivo à natureza tem dessas conseqüências
duvidosas.
Estamos, como sempre, às voltas com duas heranças do Iluminismo: a de Voltaire e a de Rousseau, ironia e sentimentalidade,
progresso técnico e retorno à natureza.
Um velho humanismo, não tão
ecológico assim, prevalece, entretanto, na cena mais bela do filme:
quando o violinista enceta o ritual, impondo estranhamente os
poderes do instrumento sobre o
corpo do camelo, é como se estivéssemos diante um ato mais
simbólico do que meramente religioso. Procura-se "humanizar",
com os recursos de nossa própria
linguagem, uma natureza incompreensível, teimosa, hostil.
Lá pelos anos 40 ou 50, o poeta
Paul Éluard fazia em termos semelhantes o elogio do trabalho
humano: trata-se, dizia ele, de
"iluminar a pedra", de "esclarecer os bosques", de "suavizar a
terra."
Não sei mais o que pensar de tal
fraseologia. É tão irreal quanto a
idéia de um camelo chorando de
emoção e de remorso. Mas, diante
das lágrimas que ultimamente
andam jorrando nas CPIs e nas
entrevistas coletivas, não custa
dar crédito aos camelos para variar um pouco.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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