São Paulo, quarta-feira, 14 de setembro de 2005

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MARCELO COELHO

Melhor acreditar nos camelos

Quem entra numa sala de cinema deve estar preparado para tudo. Eu devia ter uns 20 anos quando vi pela primeira vez o braço de alguém ser arrancado a dentadas: era uma refilmagem de "Sangue de Pantera", e não sei que personagem coadjuvante se aproximava demasiado de Nastassia Kinski. A moça se transformava em felino e expunha à platéia atordoada o bote de uma ferocidade súbita, carnívora, castradora.
"Tenho só 20 anos", suspirei; "que tipo de coisa me espera quando eu for ao cinema lá pelo ano 2000?" Várias respostas podiam ser imaginadas, mas nunca pensei que eu acabaria acompanhando com interesse, e até mesmo com emoção, os detalhes difíceis do parto de um camelo albino.
O filme, em cartaz no Espaço Unibanco em São Paulo, é um documentário rodado no deserto de Gobi e mostra o cotidiano de uma família de pastores. As primeiras cenas parecem nos transportar para a Pré-História: alguém colhe magros feixes de lenha no mais inóspito lugar da Terra, amarra a carga ao dorso de um camelo e segue viagem para a cabana da família.
Não há narração, os pastores falam pouco, os camelos e carneiros ainda menos. Quando não se abre às belas visões das planícies da Mongólia, volta e meia assaltadas pelas tempestades de areia, a câmera de Luigi Falorni e Byambasureen Davaa se dedica a registrar, com insistente imparcialidade, rostos humanos e closes de camelos: somos todos mamíferos.
À primeira vista, "Camelos Também Choram" quer enfatizar um estado arcaico de harmonia ecológica entre seres humanos e animais. Só depois de um bom tempo de projeção é que a presença de alguns utensílios modernos no cotidiano dos pastores vai sendo revelada ao espectador: panelas de alumínio, uma caneta Bic ou uma escova com cabo de plástico.
O "drama" do filme, seu principal conflito, aparece depois do nascimento de um camelozinho chamado Torok, que passa a ser rejeitado pela mãe. Não adianta correr atrás dela, suplicar auxílio do mundo à sua volta: a camela se recusa a amamentá-lo.
Os humanos, então, recorrem a um rito tradicional: é preciso chamar alguém que toque violino para acompanhar certos cânticos entoados por uma mulher da comunidade. Não há violinistas na aldeia; duas crianças são encarregadas de buscar um na cidade mais próxima. Depois de tanto tempo assistindo às cenas no deserto, partilhamos a mesma surpresa das crianças ao descobrir a existência de motocicletas, televisões e sorveteiros a uma distância não muito grande da aldeia de origem.
A "fábula" de "Camelos Também Choram" parece então concluir-se com exemplar legibilidade. De um lado, tenta-se preservar um mundo de continuidade tradicional, ecológica, ritual -mães junto de filhos, homens junto de bichos, natureza junto de cultura. No sentido inverso, os meninos vislumbram um mundo de descontinuidades, de rupturas, de desequilíbrios: o desenvolvimento tecnológico, a TV, o comércio, a "civilização".
É claro, há muito tempo a "civilização" (neste sentido) se encontra no banco dos réus, enquanto aumentam nossas simpatias neo-românticas pela natureza, pela tradição e pelo tribal. É quase impossível escapar, assim, de uma interpretação "antitecnológica", "mamífera", desse documentário.
Algumas ambigüidades, entretanto, talvez o tornem mais complexo do que parece à primeira vista. A situação "natural" e "harmoniosa" em que convivem pastores e animais talvez seja uma ilusão de ótica, que o documentário por vezes ameaça desvelar.
"Camelos Também Choram" denuncia o tempo todo a sua própria artificialidade: os efeitos sonoros são obviamente manipulados. Mais do que isso, é impossível evitar a impressão de que certos diálogos dos pastores foram reencenados de propósito para as câmeras.
Será que com essa ironia, esse falseamento intencional, o documentário pretende assinalar, melancolicamente, que, naquele lugar, toda a "autenticidade" natural já foi perdida? Mas seu tom não é melancólico: não lhe faltam momentos de comédia sentimental, por vezes abusando de nossa credulidade. O clímax do filme -a cena em que um camelo "chora"- talvez nos faça também chorar, mas tem tudo para ser uma armadilha narrativa.
Os créditos do filme apresentam em pé de igualdade tanto os protagonistas humanos quanto a dupla de camelos -o que, de certo ponto de vista, parece um ato de humor inocente e, de outro, tem algo de perverso e derrisório. Para nos mostrar que "camelos também choram", o filme às vezes sugere que seres humanos também mugem; o culto excessivo à natureza tem dessas conseqüências duvidosas.
Estamos, como sempre, às voltas com duas heranças do Iluminismo: a de Voltaire e a de Rousseau, ironia e sentimentalidade, progresso técnico e retorno à natureza.
Um velho humanismo, não tão ecológico assim, prevalece, entretanto, na cena mais bela do filme: quando o violinista enceta o ritual, impondo estranhamente os poderes do instrumento sobre o corpo do camelo, é como se estivéssemos diante um ato mais simbólico do que meramente religioso. Procura-se "humanizar", com os recursos de nossa própria linguagem, uma natureza incompreensível, teimosa, hostil.
Lá pelos anos 40 ou 50, o poeta Paul Éluard fazia em termos semelhantes o elogio do trabalho humano: trata-se, dizia ele, de "iluminar a pedra", de "esclarecer os bosques", de "suavizar a terra."
Não sei mais o que pensar de tal fraseologia. É tão irreal quanto a idéia de um camelo chorando de emoção e de remorso. Mas, diante das lágrimas que ultimamente andam jorrando nas CPIs e nas entrevistas coletivas, não custa dar crédito aos camelos para variar um pouco.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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