São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2008 |
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Mônica Bergamo bergamo@folhasp.com.br Memórias do Cárcere
Dois anos depois de ter sido preso, Edemar Cid Ferreira fala pela primeira vez, publicamente, sobre a vida na cadeia; diz que ela é um "depósito humano" e que as organizações criminosas têm,
"no fundo, um objetivo social"
Ao chegar à cadeia de Guarulhos, em SP, no dia 26 de maio de 2006, o ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, condenado por crimes contra o sistema financeiro, recebeu papel higiênico, sabonete, material de limpeza e colchonete. Dormiu com 20 detentos numa cela onde só cabiam 11; dias depois, foi transferido para a Penitenciária 2 de Tremembé; freqüentou cultos religiosos, fez amigos como o cabo Bruno e montou um presépio; 89 dias depois, por determinação do STF (Supremo Tribunal Federal), deixou a cadeia disposto a abrir uma ONG para ajudar os presos. Se aproximou de Nagashi Furukawa, o ex-secretário de Administração Penitenciária demitido na crise do PCC. E deu a ele um depoimento de dezenas de páginas sobre o que viveu dentro da prisão, onde diz ter presenciado "o máximo do desespero e do sofrimento que o espírito humano pode ter. Porque a partir daí é a morte". A CHEGADA "Quando fui para lá [Centro de Detenção de Guarulhos], eu não sabia o que ia acontecer. O primeiro dia foi muito angustiante. Me deixaram na enfermaria por dois dias. Foi uma proteção. São 1.600 presos: como eles iriam reagir comigo? Foi uma maneira "friendly" de me colocar em contato com os outros detentos (...) Nunca senti temor físico. Você olha nos olhos de outro preso e vê que não há perigo. Você está ali pagando pelo que fez, pelo que não fez. Mas é igual a ele. E todos têm que se solidarizar." A VIDA NA CADEIA "Aí fui levado para a observação por dez dias (...) confinado, sem tomar sol, sem poder sair da cela. Esta cela tinha 12 camas, das quais só 11 podiam ser usadas, porque uma serve para uma espécie de guarda de alimentos. Nesse universo havia, em geral, o dobro de presos em relação às camas disponíveis. Às vezes o número é tão alto que nem no chão dá para dormir. Você tem que dividir as camas com outras pessoas, fazendo o que chamam de "valete': os presos deitam-se de forma invertida, como no valete das cartas, com os pés ao lado da cabeça do companheiro." OS LÍDERES "Como acontece em uma mesa de baralho, a tendência é que as conversas se nivelem ao mais baixo nível da pessoa presente. Existe na cadeia uma igualdade de situação, ou seja, todos são iguais, não há mais rico, menos rico, mais culto ou menos culto. Na nossa cela havia um menino que nunca morou em uma casa. A última vez que dormiu numa casa tinha três anos. O resto do tempo viveu na rua. Então o nível se baixava a ele, porque se não fizesse isso, ele não conseguia falar, não conseguia ser entendido. Ao baixar o nível (...) começam a liderar normalmente três tipos que se igualam: o mais criminoso, mais feroz; o mais falante, inteligente e preparado; finalmente, o mais religioso. Essa liderança é importante para a sobrevivência, para que não haja tumulto na convivência daquelas vinte e poucas pessoas. São eles que definem quem deve fazer a limpeza, quem deve pegar a refeição, a distribuição dessa refeição, quem vai para a cama e quem dorme no chão, quem vai debaixo da cama, porque ali existe um pequeno espaço que precisa ser aproveitado. Essa liderança é natural. Não é imposta e é obedecida." A FAMÍLIA "Outro grande problema é a dificuldade enorme desses presos com a família que está fora. Como ele está preso e não trabalha, fica passando o tempo jogando cartas, dominó, conversando, sempre muito preocupado com a família. Não está preocupado com ele, que já se julga um lixo ali dentro. É o último dos homens. Agora ele está preocupado com o filho, se está comendo, se alimentando; com a mulher, se eventualmente não o está traindo, se prostituindo, para buscar dinheiro. Essa é a preocupação que assola o preso." O CRIME ORGANIZADO "E é nisso que nasce o crime organizado: o crime organizado nasce nos presídios onde tem depósito humano exatamente pela preocupação do preso em manter sua família viva aqui fora. Então eles organizam esquemas, uma forma de dar sustentabilidade à família. A organização acaba servindo os presos, aos seus familiares, dando proteção dentro e fora da cadeia. Essas organizações criminosas, como PCC, CRBC etc, têm no fundo um objetivo social. O crime não é o objetivo da organização, mas apenas meio para atingir o objetivo social." O TRABALHO "A maneira de se combater esse crime organizado não é (...) com a polícia, matando, prendendo etc -não é nada disso. Isso não resolve absolutamente nada. Só instiga o problema. Isso se resolve dando uma condição correta ao preso e à sua família. E como é que se dá essa condição correta? Com uma palavra: trabalho. O preso tem que trabalhar e ganhar bem, tem que ser produtivo, para que se reeduque e entenda a função social da pena." A ONG "O governo pode dar incentivo para que sejam criadas indústrias dentro dos presídios. O preso ganharia um salário para proteger a sua família e isso quebraria o círculo vicioso das organizações criminosas. A indústria não pagaria imposto, água, energia. Vivi uma experiência amarga, mas rica do ponto de vista do entendimento. Quando saí da prisão, criei uma ONG e cheguei a pensar em levar uma indústria para o presídio de Sorocaba. Acabei parando por causa das demandas meus próprios processos." Texto Anterior: Horário nobre na TV aberta Próximo Texto: Alice na cidade Índice |
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