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CONTARDO CALLIGARIS
De novo, sobre a cura da homossexualidade
Na semana passada, critiquei o projeto de lei que
criaria, no Estado do Rio de Janeiro, um programa de auxílio às
pessoas que optarem pela mudança de sua orientação sexual
da homossexualidade para a heterossexualidade. O "auxílio"
consistiria em alocar fundos públicos a organizações e profissionais que proponham curas da homossexualidade.
Numerosos leitores me perguntaram como poderiam manifestar sua indignação. O Centro Latino-Americano em Sexualidade
e Direitos Humanos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
está colhendo adesões de protesto
(www.clam.org.br).
Mas quero sobretudo responder
àqueles leitores que me escreveram para defender o projeto.
1) Alguns acharam abusiva minha comparação do programa
carioca com um hipotético Instituto Michael Jackson para converter os negros em brancos. Concordo: cor da pele, orientação sexual, opinião ou fé são coisas bem
diferentes. No entanto todos esses
termos designam campos em que
os cidadãos não precisam se conformar a uma norma. Nesses
campos, o governo democrático
garante a igualdade de todos perante a lei e cuida para que a sociedade não discrimine.
Conseqüência: você é evangélico; é seu direito expressar seu convencimento e mesmo tentar me
converter. Mas o dinheiro público
(que pertence a todos os cidadãos,
em sua diversidade) não pode ser
destinado a me arregimentar para sua igreja. Essa atividade você
vai ter que pagar de seu bolso.
2) Outros argumentaram: a homossexualidade não é uma diferença protegida constitucionalmente, pois é uma doença ou, como escreveu a Comissão de Saúde
da Assembléia carioca, "uma distorção da natureza". E o Estado
tem o dever sacrossanto de curar
os enfermos.
O relator da Comissão de Saúde
foi o deputado Samuel Malafaia
(PMDB), engenheiro e evangélico. Votou a favor. De onde lhe viria a competência para julgar se a
homossexualidade é ou não um
problema de saúde pública, não
sei. Talvez um dom do Espírito
Santo no último Pentecostes.
Votou a favor também o deputado Paulo Melo (PMDB), sem
formação específica, inspirado
(imagino) pelo preconceito comum.
O terceiro membro era o deputado Paulo Pinheiro (PT), médico
pediatra. E ele votou pela "baixa
em diligência", ou seja, ele pediu
que o relatório fosse sustado e, por
exemplo, avaliado por agentes
competentes. Minoritário, seu voto não surtiu efeito nenhum.
Paulo Pinheiro não tinha como
votar diferente. Em 1973, a American Psychiatric Association retirou a homossexualidade da lista
dos transtornos mentais ou emocionais. Sucessivamente, a decisão foi ratificada pela American
Psychological Association, pela
American Counseling Association, pela Associação Brasileira
de Psiquiatria, pelo Conselho Federal de Medicina e pela Organização Mundial da Saúde. O Conselho Federal de Psicologia pede
explicitamente que os psicólogos
não colaborem com serviços que
propõem uma "cura" da homossexualidade.
3) Outros ainda interrogaram a
expressão "orientação sexual". É
uma formação genética? É o resultado de traumas infantis ou da
propaganda cultural hollywoodiana? Ou é uma escolha livre?
Não acredito que a homossexualidade (assim como qualquer
outra orientação sexual) tenha
origem propriamente genética. As
melhores pesquisas com gêmeos
univitelinos mostram que a homossexualidade é comum a ambos os gêmeos em 50% dos casos.
Pouco, tratando-se de sujeitos
com patrimônio genético idêntico.
Quanto aos fatores externos, a
American Psychiatric Association
concluiu há tempo que a incidência de eventos traumáticos na infância de sujeitos homossexuais é
igual à da população em geral e
não é especialmente relacionada
à orientação sexual adulta.
Em matéria de "propaganda"
hollywoodiana que glamourizaria a homossexualidade, qualquer terapeuta pode confirmar o
seguinte: os produtos culturais
que, com mais freqüência, são
marcantes na constituição de
fantasias homossexuais são estátuas de anjos e santos nas igrejas
ou histórias de mártires cristãos.
Enfim, a orientação sexual é
uma escolha?
Por comodidade, hoje, fala-se
de três orientações sexuais: heterossexual, homossexual e bissexual. Essa distinção tripartida é
aproximativa. Por exemplo, como catalogar uma mulher que
gosta que seu parceiro a "force" a
ser, diante dele, o objeto sexual
passivo de outra mulher? Bissexual? É complicado, pois, fora do
cenário mencionado, ela detestaria os amassos, os beijos e a transa
com uma outra mulher. Perguntas análogas podem ser colocadas
para homens.
Em suma, nossas orientações
sexuais são misturas singulares e
únicas de fantasias, situações, palavras e preferências quanto ao
sexo dos parceiros.
Afirmar que essas orientações
são "escolhas" não significa que
as adotemos como um prato no
cardápio (carne ou peixe?).
Certo, a orientação sexual pode
mudar no decorrer de uma vida,
mas, a cada instante, ela é uma
parte irrenunciável do que define
um sujeito. É uma "escolha" neste
sentido: ela é imposta a cada um
por seu corpo e por sua história,
nunca pela vontade abstrata de
um legislador.
ccalligari@uol.com.br
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