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FERREIRA GULLAR
Rebelião dos homens-flor
Os monges de Mianmar, que buscam democracia, são o contrário dos homens-bomba
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FAZ 45 anos que a antiga Birmânia, hoje Mianmar, vive sob
ditadura militar. É muito
tempo. As ditaduras, lá como cá,
qualquer que seja o pretexto de que
se valham, são muito parecidas: não
toleram opositores, cerceiam as liberdades, censuram a imprensa,
violam os direitos humanos, prendem, torturam, matam. Nós, brasileiros, nós, latino-americanos, conhecemos isso muito bem. E essa é
uma das razões por que nos identificamos com a luta dos monges birmaneses e com eles nos solidarizamos em nome da maioria dos brasileiros, particularmente daqueles
que sentiram na carne o arbítrio do
totalitarismo.
O surgimento das ditaduras pode
ter muitas causas e, entre elas, está
quase sempre a descrença na democracia e a crença ilusória em promessas milagrosas. Outra das causas
é a pressa na solução dos problemas
sociais, pressa essa que nasce do
desconhecimento de sua complexidade. É natural que se tenha urgência em eliminar as desigualdades e
estender a todos melhores condições de vida, mas é perigoso acreditar em salvadores da pátria e em soluções de força. O mal do bom tirano
é que ele acha que nunca erra, logo,
quem o critica, critica-o por razões
sórdidas, é inimigo do povo.
Lembro-me da visão equivocada,
que eu e meus companheiros tínhamos, às vésperas do golpe de 1964.
Dizíamos então que o regime político do Brasil não era democrático,
porque milhões de brasileiros viviam abaixo da linha de pobreza.
Era, dizíamos, uma falsa democracia. Aí, veio o golpe militar e logo, logo, aprendemos a diferença entre
um regime cheio de defeitos, mas
que nos permitia denunciá-los e lutar por mudanças, e um outro, que
chegava prometendo tudo corrigir,
mas que não permitia a ninguém
abrir a boca. E quem a abriu demasiado sofreu as conseqüências da
prisão, da tortura, do exílio, quando
não sumiu para sempre.
Mianmar fica longe de nós, no sudeste asiático, imprensada entre a
Índia e a China, que parecem tudo
fazer para que não se saiba do que se
passa ali. É que tanto uma quanto
outra, por razões estratégicas e econômicas, têm interesse em que nada
mude na pequena e pobre Mianmar.
A China, que já submeteu e calou os
monges budistas do Tibete, não tem
qualquer simpatia pela rebeldia dos
monges birmaneses em sua luta pela democracia, não só porque vê nisso um mau exemplo para seu povo,
como porque, graças à ditadura do
general Than Shwe, tem garantido
para si o fornecimento do petróleo e
do gás birmaneses. Por isso mesmo,
na ONU, vetou a proposta que visava
deter a violência dos militares contra os monges e militantes da causa
democrática.
A Índia, embora seja uma democracia, tampouco está interessada
em entrar em conflito com a ditadura birmanesa, que lhe abriu as portas
para lucrativos investimentos. Isto
para não falar em quase 200 empresas estrangeiras, que para lá se mudaram, em busca de mão-de-obra
barata.
Desse modo, o povo birmanês está
refém de uma conjugação de interesses, diante dos quais pouco parece importar a violação dos direitos
humanos que ali se tornou constante em quatro décadas de ditadura
militar. É muito tempo mas eis que,
outro dia, centenas de monges com
suas vestes cor de açafrão atravessaram o centro de Yangon, um atrás do
outro, formando uma fila de 1 km de
extensão. A repressão recrudesceu.
Calcula-se que haja atualmente ali
mais de 6.000 prisioneiros políticos,
a respeito dos quais pouco se sabe.
Depois dos protestos de 1988, os
militares banharam em sangue o
país. Ainda assim, em 1990, o povo
birmanês elegeu por ampla maioria
Aung San Suu Kyi para governá-lo,
mas as eleições foram anuladas e até
hoje ela é mantida em prisão domiciliar. Em 1992, foi-lhe outorgado o
Prêmio Nobel da Paz mas nem isso
fez com que a ditadura a libertasse.
Suu Kyi é o símbolo da resistência
do povo birmanês ao regime, e é em
seu exemplo que se inspiram os
monges budistas, que clamam pela
democracia. Não são violentos, não
matam ninguém, são o contrário
dos homens-bomba, são os homens-flor, que têm por armas a paciência e
a determinação. Sua rebelião pacífica já começa a despertar o mundo
inteiro.
Agora milhões de monges de vários outros países asiáticos aderiram
tacitamente ao seu protesto. Homens e mulhares, jovens e anciãos,
não apenas da Ásia mas também de
outros países, somam-se a esse
apoio solidário.
Mianmar fica longe, do outro lado
do mundo, mas a coragem de seus
monges e o rosto sereno de Suu Kyi
os tornam tão próximos, que até
posso beijar-lhes a fronte e apertar-lhes as mãos. Sua paciência derrotará o inimigo.
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