São Paulo, terça-feira, 14 de outubro de 2008

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O senhor da guerra

Obcecado por casos mórbidos, Errol Morris fala sobre seu novo filme, um estudo das imagens de tortura na prisão de Abu Ghraib

Divulgação
O documentarista, diretor de "Procedimento Operacional Padrão", que venceu o Urso de Prata em Berlim e será exibido na Mostra Internacional de SP; o filme deve estrear nos cinemas no dia 31

CRISTINA FIBE
DA REPORTAGEM LOCAL

Errol Morris, 60, é obcecado por assassinatos e casos mórbidos. Ex-investigador de polícia, há 30 anos o americano usa o cinema para aprofundar o estudo de personagens psicopatas e/ou bizarros.
Não é difícil entender, portanto, por que Morris não ficou parado diante das imagens de abusos cometidos por militares dos EUA contra iraquianos na prisão de Abu Ghraib, que se espalharam pela web em 2004.
"Bodes expiatórios" dos altos escalões, os soldados falam à câmera de Morris na tentativa de justificar as imagens.
O resultado é o cortante "Procedimento Operacional Padrão" -nome que se dá, na Justiça americana, às práticas "aceitáveis" em interrogatórios-, exibido na Mostra Internacional de SP e que deve estrear nos cinemas no próximo dia 31.
Com ele, Morris, que já ganhara um Oscar, em 2004, por "Sob a Névoa da Guerra", foi premiado com o Urso de Prata em Berlim.
Dos EUA, o diretor contou à Folha que seu próximo filme será uma comédia ficcional e que deve transformar seu blog em livro (morris.blogs.nytimes.com).

 

FOLHA - Como você convenceu os militares a falar com naturalidade?
ERROL MORRIS
- Isso é parte do que faço desde o começo como cineasta. Me disseram, anos atrás, que minhas entrevistas eram muito diferentes das outras. Acho que há uma série de razões para isso. Não preparo perguntas e respostas, não é como se o que eu tentasse encorajar fosse uma resposta a uma questão específica. Estou muito mais interessado em um jorro de consciência, narração.
Sim, ocasionalmente se ouve a minha voz fazendo uma pergunta. Mas a idéia principal é não ter um entrevistador ou um narrador.

FOLHA - Eles deram as entrevistas após serem julgados nos EUA?
MORRIS
- Sim, bem depois, porque muitas daquelas pessoas estavam na prisão [nos EUA, condenadas por tortura], e eu não tinha acesso a elas.

FOLHA - Por que você escolheu não entrevistar as vítimas?
MORRIS
- Tentei, na verdade.
Mas não consegui achar as pessoas das fotos. Pareceu-me inútil entrevistar qualquer prisioneiro de Abu Ghraib. É tudo direcionado pelas fotos, e as pessoas a entrevistar eram "Gus", o sujeito na coleira, na famosa foto de Lynndie England, e o homem com o capuz, [preso] na caixa com os fios [elétricos]. Não consegui achá-los.

FOLHA - E o que foi feito para encontrá-los?
MORRIS
- Pagamos pessoas em Bagdá, tentamos investigar, tentamos, é claro, apelar aos militares, mas não adiantou. Se tivesse achado aqueles dois prisioneiros eu os teria colocado no filme... O problema é que o Iraque está em um estado de caos, não está claro se os prisioneiros gostariam de falar, mesmo se fossem encontrados. De fato, e essa é uma história diferente, houve um impostor que se apresentou como aquele que ficou preso com um capuz. Ele ficou preso em Abu Ghraib, mas não era aquele homem.

FOLHA - Você se arrepende de não ter conseguido colocar o ponto de vista das vítimas no filme?
MORRIS
- Não, de jeito nenhum. Eu gostaria de tê-lo. Se me arrependo? Não. Não há dúvidas na minha cabeça de que Abu Ghraib foi um lugar ruim e de que as pessoas foram torturadas lá. Isso não é uma questão.

FOLHA - E por que você volta a usar reencenações neste filme?
MORRIS
- Talvez seja uma escolha pobre de palavras, talvez eu nunca devesse ter usado o termo reencenação. Porque não estou reencenando nada... Voltemos ao exemplo de England e a coleira. A reencenação foca na coleira, para que você possa pensar nela. [...] É um instrumento impressionista pedindo que você pense naquilo.

FOLHA - Você acredita no que te contaram? Por exemplo, quando England diz que não puxou a coleira, acredita nela?
MORRIS
- Sim! Acredito. E se ela estava ou não puxando a coleira é irrelevante. Não faz nada menos pior.

FOLHA - Como foi a distribuição do filme nos EUA? Você enfrentou alguma censura?
MORRIS
- O filme está sendo lançado em formato DVD, e muito mais pessoas vão assisti-lo. Acho que esse filme vai estar conosco por muito mais tempo do que as pessoas gostariam.
Censura? Não. Acho que o que é tão assustador nos EUA é que a mídia exerce uma autocensura. É um tempo muito louco na América.

FOLHA - No que você está trabalhando agora?
MORRIS
- Tenho trabalhado em vários comerciais e comecei outro filme...

FOLHA - Sobre o quê?
MORRIS
- É minha tentativa de fazer uma comédia em vez de uma tragédia.

FOLHA - Mas é um documentário?
MORRIS
- Na verdade, não, um híbrido. É uma história real mas, desta vez, estará do outro lado da linha.

FOLHA - Sem investigação?
MORRIS - Terá um elemento investigativo. E é sobre uma ilha no meio do Pacífico norte.

FOLHA - Isso é tudo o que pode contar?
MORRIS
- É... Não acho que deva falar sobre isso demais, senão não conseguirei realmente fazer o filme. E dá azar.


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