São Paulo, terça-feira, 14 de novembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARNALDO JABOR

Gore-Bush: eleição de perdedores empata o mundo

Hoje, terça-feira, talvez o leitor amigo já saiba o resultado das eleições americanas. Eu ainda estou aqui, no sábado, mergulhado em trevas, mas creio que esta eleição vai mudar a cara do mundo, à beira do século 21. Al Gore e Bush são vinhos da mesma pipa, para usar uma imagem do século 18, e significam um retrocesso em relação a Bill Clinton, este ator de cinema, este galã paquerador, este "baby boomer" tocador de sax, com seu sorriso mordido, seu populismo cínico (e sincero), que inaugurou uma ambiguidade de comportamento inédita no governo americano. Seu ídolo era o John Kennedy, mas Clinton foi melhor. Kennedy, visto de hoje, não passa de um bonito aristocrata, casado com uma gata afrancesada. A beleza e charme do casal transmitiam um clima de harmonia rica e "debonaire" que nos iludia como sendo uma "modernidade", no início dos ingênuos anos 60. Kennedy tinha olhos "sampaku" e uma malignidade no rosto bem visível na perspectiva de hoje. Era um reacionário truculento que começou a guerra do Vietnã, invadiu Cuba pela baía dos Porcos e quase explode a Terra na crise dos mísseis de 62. Por trás de seu falso encanto, dá para ver o pai Joseph Kennedy, velho sacripanta de Wall Street e vago admirador do Reich que, quando embaixador na Inglaterra, Churchill considerava um batedor de carteiras. Atribuíram a Kennedy um "progressismo" que ele não tinha; Jackie era uma dondoca deslumbrada e sua única "reforma de costumes" foi a pobre da Marilyn Monroe seduzida e humilhada, cantando "Happy birthday, Mr. President" na Casa Branca. Kennedy teve apoio da Máfia que, dizem, mandou matá-lo por descumprir promessas eleitorais.
O verdadeiro John Kennedy foi o Clinton, batizado por seu assassinato em Dallas, que pôs fim àquela falsa revolução chic contra a burríssima "silent generation" dos anos de Eisenhower. Clinton é filho da sexualidade dos 60, das drogas que tomou, e tragou, e do rock. Como bom Narciso, tem fascinação pelo poder e, ao mesmo tempo, nutre um distanciamento crítico pela caretice americana. Clinton tem a consciência da presidência como "show"; sabe fazer seu papel carismático e, dentro desta mentira, exercer uma certa "verdade" progressista. Sua imagem é simpática e esperançosa e só caiu em desgraça quando o espermatozóide no vestido de Monica o denunciou, no maior flagrante adultério da historia humana. Sua carreira gloriosa foi desviada pelos lábios de uma mocinha histérica e pela bicha-de-armário Kenneth Starr, o promotor republicano que dedicou sua vida a destruí-lo, seu amor pelo avesso.
O advento de Gore e Bush deve-se a esses dois estafermos.
Bush e Gore retratam a América que vem por aí, restauradora, dividida entre a caretice e a liberdade. Os dois invejam Clinton e concorreram referenciados a seu sucesso com 70% do amor da opinião publica. Se não fosse o fatídico "blow job" ("boquete"), Al Gore seria coroado imperador. Burramente, ele resolveu fugir do seu presidente, querendo ser um Clinton "light", marido fiel, obediente e bom-moço, com reconfortadoras tintas republicanas. O Bush, também, grande torrador de condenados na cadeira elétrica, tentou se mostrar tolerante e democrata.
Gore é bobo; Bush é burro. Bush tem rompantes de liberdade adulta, mas logo recai sob o domínio do pai. Gore é chato, se acha "bom". Bush não confia em si e tem a cara que mais me atemoriza: sente-se vitimado por "algo" e se afirma por meio de uma arrogância insegura, trêmula, disfarçada por um sorriso torto, com uma ponta de desprezo por nós, como bem notou L.F. Verissimo. Bush é, visivelmente, um homem triste, dominado pelo mundo do "não", da "expiação", da impotência na alma que o seu alcoolismo tentou "liberar". Bush vai querer mostrar que não é filho-de-papai nem burro, e isso o fará cometer temíveis bravatas e gafes, sempre que estiver sob pressão. Aposto que voltará a beber, de madrugada, babujando sozinho pela Casa Branca, a ex-"garçonnière" de Clinton.
Nenhum dos dois tem "showmanship" para encarnar a personagem cinematográfica de líder do Ocidente que Clinton desempenhou com talento. Ambos são figurantes, "supporting cast", elenco de apoio. Em Hollywood, ninguém lhes daria um papel principal. São uma ameaça para o mundo.
Diante da crise árabe-israelita ou da Colômbia, ou do terrorismo de Osama, imaginem o caipirismo doméstico de Bush ou o bom-mocismo trêmulo, a custosa agressividade de Gore.
Gore e Bush, como disse o Thomas Friedman no "N.Y. Times", já "nasceram em pecado". Além de serem caricaturas, referenciados a Clinton, chegam nariz com nariz ao fim, um tirando a legitimidade do outro. Uma eleição de perdedores acabou empatada. Não há "winners" nesta eleição de "losers".
O mundo "globalizado" vai ficar sem liderança, neste momento delicadíssimo. Logo, se reativarão o terrorismo e as provocações dos "países patifes" ("rogue countries") e, na América Latina, pela Alca e Colômbia, ressurgirá a velha política do "big stick", sem a elegância e a vaselina com que Clinton nos ferrava. Bush (que, no meu palpite, será o presidente) vai governar o mundo com a cabeça doméstica e, como escreve o Thomas Friedman, "veremos manifestações da época da Guerra do Vietnã, se Bush ousar se aliar à direita cristã para impor sua agenda". Como governar com esta divisão? Como governar trancado pelo Congresso, cercado de ações públicas e acusações de fraude? A estabilidade do mundo vai precisar que o presidente eleito busque um governo bipartidário, de união nacional.
Infelizmente, não dá mais para acreditar em bom senso histórico. Diante desses dois incompetentes, está a vertigem doida do turbo-capitalismo financeiro, com a fome das corporações do tabaco, das armas, da indústria financeira, com as megafusões e aquisições, com o Oriente, o petróleo, o euro, a informática, a miséria explosiva dos excluídos. A história volta a andar de lado. Teremos saudades do sacana do Clinton. Bons tempos.


Texto Anterior: Mostra traz imagens de romeiros
Próximo Texto: Evento: Balaio quer iluminar cafundós do Brasil
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.