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ARNALDO JABOR
Gore-Bush: eleição de perdedores empata o mundo
Hoje, terça-feira, talvez o leitor amigo já saiba o
resultado das eleições americanas. Eu ainda estou aqui, no sábado, mergulhado em trevas, mas
creio que esta eleição vai mudar a
cara do mundo, à beira do século
21. Al Gore e Bush são vinhos da
mesma pipa, para usar uma imagem do século 18, e significam um
retrocesso em relação a Bill Clinton, este ator de cinema, este galã
paquerador, este "baby boomer"
tocador de sax, com seu sorriso
mordido, seu populismo cínico (e
sincero), que inaugurou uma ambiguidade de comportamento
inédita no governo americano.
Seu ídolo era o John Kennedy,
mas Clinton foi melhor. Kennedy,
visto de hoje, não passa de um bonito aristocrata, casado com uma
gata afrancesada. A beleza e
charme do casal transmitiam um
clima de harmonia rica e "debonaire" que nos iludia como sendo
uma "modernidade", no início
dos ingênuos anos 60. Kennedy tinha olhos "sampaku" e uma malignidade no rosto bem visível na
perspectiva de hoje. Era um reacionário truculento que começou
a guerra do Vietnã, invadiu Cuba
pela baía dos Porcos e quase explode a Terra na crise dos mísseis
de 62. Por trás de seu falso encanto, dá para ver o pai Joseph Kennedy, velho sacripanta de Wall
Street e vago admirador do Reich
que, quando embaixador na Inglaterra, Churchill considerava
um batedor de carteiras. Atribuíram a Kennedy um "progressismo" que ele não tinha; Jackie era
uma dondoca deslumbrada e sua
única "reforma de costumes" foi a
pobre da Marilyn Monroe seduzida e humilhada, cantando
"Happy birthday, Mr. President"
na Casa Branca. Kennedy teve
apoio da Máfia que, dizem, mandou matá-lo por descumprir promessas eleitorais.
O verdadeiro John Kennedy foi
o Clinton, batizado por seu assassinato em Dallas, que pôs fim
àquela falsa revolução chic contra a burríssima "silent generation" dos anos de Eisenhower.
Clinton é filho da sexualidade dos
60, das drogas que tomou, e tragou, e do rock. Como bom Narciso, tem fascinação pelo poder e,
ao mesmo tempo, nutre um distanciamento crítico pela caretice
americana. Clinton tem a consciência da presidência como
"show"; sabe fazer seu papel carismático e, dentro desta mentira,
exercer uma certa "verdade" progressista. Sua imagem é simpática
e esperançosa e só caiu em desgraça quando o espermatozóide
no vestido de Monica o denunciou, no maior flagrante adultério da historia humana. Sua carreira gloriosa foi desviada pelos
lábios de uma mocinha histérica
e pela bicha-de-armário Kenneth
Starr, o promotor republicano
que dedicou sua vida a destruí-lo,
seu amor pelo avesso.
O advento de Gore e Bush deve-se a esses dois estafermos.
Bush e Gore retratam a América que vem por aí, restauradora,
dividida entre a caretice e a liberdade. Os dois invejam Clinton e
concorreram referenciados a seu
sucesso com 70% do amor da opinião publica. Se não fosse o fatídico "blow job" ("boquete"), Al Gore seria coroado imperador. Burramente, ele resolveu fugir do seu
presidente, querendo ser um Clinton "light", marido fiel, obediente
e bom-moço, com reconfortadoras tintas republicanas. O Bush,
também, grande torrador de condenados na cadeira elétrica, tentou se mostrar tolerante e democrata.
Gore é bobo; Bush é burro. Bush
tem rompantes de liberdade
adulta, mas logo recai sob o domínio do pai. Gore é chato, se
acha "bom". Bush não confia em
si e tem a cara que mais me atemoriza: sente-se vitimado por
"algo" e se afirma por meio de
uma arrogância insegura, trêmula, disfarçada por um sorriso torto, com uma ponta de desprezo
por nós, como bem notou L.F. Verissimo. Bush é, visivelmente, um
homem triste, dominado pelo
mundo do "não", da "expiação",
da impotência na alma que o seu
alcoolismo tentou "liberar". Bush
vai querer mostrar que não é filho-de-papai nem burro, e isso o
fará cometer temíveis bravatas e
gafes, sempre que estiver sob pressão. Aposto que voltará a beber,
de madrugada, babujando sozinho pela Casa Branca, a ex-"garçonnière" de Clinton.
Nenhum dos dois tem "showmanship" para encarnar a personagem cinematográfica de líder
do Ocidente que Clinton desempenhou com talento. Ambos são
figurantes, "supporting cast",
elenco de apoio. Em Hollywood,
ninguém lhes daria um papel
principal. São uma ameaça para
o mundo.
Diante da crise árabe-israelita
ou da Colômbia, ou do terrorismo
de Osama, imaginem o caipirismo doméstico de Bush ou o bom-mocismo trêmulo, a custosa
agressividade de Gore.
Gore e Bush, como disse o Thomas Friedman no "N.Y. Times",
já "nasceram em pecado". Além
de serem caricaturas, referenciados a Clinton, chegam nariz com
nariz ao fim, um tirando a legitimidade do outro. Uma eleição de
perdedores acabou empatada.
Não há "winners" nesta eleição
de "losers".
O mundo "globalizado" vai ficar sem liderança, neste momento delicadíssimo. Logo, se reativarão o terrorismo e as provocações
dos "países patifes" ("rogue countries") e, na América Latina, pela
Alca e Colômbia, ressurgirá a velha política do "big stick", sem a
elegância e a vaselina com que
Clinton nos ferrava. Bush (que,
no meu palpite, será o presidente)
vai governar o mundo com a cabeça doméstica e, como escreve o
Thomas Friedman, "veremos manifestações da época da Guerra
do Vietnã, se Bush ousar se aliar à
direita cristã para impor sua
agenda". Como governar com esta divisão? Como governar trancado pelo Congresso, cercado de
ações públicas e acusações de
fraude? A estabilidade do mundo
vai precisar que o presidente eleito busque um governo bipartidário, de união nacional.
Infelizmente, não dá mais para
acreditar em bom senso histórico.
Diante desses dois incompetentes,
está a vertigem doida do turbo-capitalismo financeiro, com a fome das corporações do tabaco,
das armas, da indústria financeira, com as megafusões e aquisições, com o Oriente, o petróleo, o
euro, a informática, a miséria explosiva dos excluídos. A história
volta a andar de lado. Teremos
saudades do sacana do Clinton.
Bons tempos.
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