|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/teatro/"Rainha[(s)] - Duas Atrizes em Busca de um Coração"
Atrizes merecem cetros e louvores
Georgette Fadel e Isabel Teixeira superam riscos em ótima montagem de texto de Schiller, em cartaz no Sesc Paulista
LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA
O mundo pode tremer
quando duas rainhas
que disputam a mesma
coroa se encontram. Foi para
concretizar esta situação dramática que Friedrich Schiller
escreveu, em 1800, sua peça de
maturidade, "Maria Stuart".
No espetáculo "Rainha[(s)]
-Duas Atrizes em Busca de um
Coração", também é esta cena
fatal que opera como núcleo organizador. De fato, as diferenças entre a dramaturgia desta
"tragédia romântica" de Schiller e aquela criada pelas atrizes
e encenadora da atual montagem são enormes.
Refletem maravilhosamente
os contrastes entre o teatro, como se o conheceu até meados
do século 20, e as novas formas
espetaculares que artistas do
teatro brasileiro contemporâneo vêm inventando.
A encenação de Cibele Forjaz
é um feito extraordinário e não
aconteceu por acaso. Para alcançá-lo ela amadureceu em
várias montagens, algumas
mais bem-sucedidas que outras, um certo modo de combinar a composição e o caos.
Filha do Oficina, ela consolida com essas rainhas sua própria marca, ao mesmo tempo
em que confirma a origem perfurando fundo. Mas o vinho raro da grande teatralidade não
teria jorrado se não fosse o encontro com duas atrizes muito
especiais: Isabel Teixeira e
Georgette Fadel.
As duas chegam à cena como
Isabel e Georgette e, mesmo assumindo as falas e os gestos das
rainhas Maria Stuart e Elizabeth 1ª -da história da Inglaterra e da peça de Schiller-,
prosseguirão até o final pontuando suas próprias histórias,
opiniões e voracidades.
Entregam-se enquanto compositoras, ao vivo, a uma síntese delas próprias com as personagens. Isto é mais que interpretar um papel servindo-se de
uma voz previamente escrita.
Isto é criar uma voz a partir das
próprias entranhas e, num jogo
com essas rainhas míticas, reinar sobre a cena.
Sem concessões
Não é um plano de vôo fácil,
nem é para qualquer um. Há
que "ralar o coração", como
confessam logo de saída. Este
coração que pulsa virtual em
um centro coroado é o motor
que move a narrativa.
Não há a representação da
peça de Schiller, com suas cenas e diálogos, nem há trama a
seguir. Há sim um argumento:
uma atriz está apaixonada pela
heroína Maria Stuart, e desinteressada dos detalhes do jogo
de forças políticas que a envolvem, o mundo dos homens.
Desse nada, que é um desejo
inicial, se tece o espetáculo na
disposição de duas atrizes maduras vestirem, cada uma, suas
potências dramáticas.
Isabel é Lady Maria, a serpente. Georgette é o cavalo Elizabeth. Esta segunda vem do
mundo masculino, é a última a
entrar em cena e se apresenta
como barro vivo, moldada lenta
e minuciosamente num excruciante exercício de sangramento, até ser, finalmente, explicitada na sua feminilidade.
A outra é a "mulher-bomba",
aquela que diante da decapitação certa prefere explodir em
júbilo moral.
Tudo isto já está latente em
Schiller. O que é novo e alvissareiro é o modo de usar e de fazer. Na linhagem de espetáculos como o "Ensaio Hamlet", da
Cia. dos Atores, e "Da Gaivota",
de Enrique Diaz, de que Isabel
Teixeira participou, o clássico é
reescrito pelas atrizes de seus
idiossincráticos pontos de vista. No aproveitamento da técnica do contato improvisação
do Nova Dança e das estruturas
de improviso de Cristiane Paoli-Quito, com quem Georgette
fez "Esperando Godot", de Beckett, escreve-se uma dramaturgia cênica aberta às variações.
Arte contemporânea
Costurando essas escrituras
corporais e anímicas, há a intuição e o traço luminoso de Cibele Forjaz, que captura as partituras líricas criadas por cada
uma das atrizes e as põe em diálogo cênico num desenho rigoroso e arrojado, cheio de nuances perigosas.
As duas atrizes, como verdadeiras rainhas, não temem os
riscos e se atiram na volúpia da
encenação. Merecem seus cetros e mais louvores. Espetáculo-instalação que contracena
com a arte contemporânea encarna, como diria Schiller, o espírito de seu tempo.
RAINHA [(S)] - DUAS ATRIZES EM BUSCA DE UM CORAÇÃO
Quando: de sex. a dom., às 20h30; até
21/12
Onde: Sesc Avenida Paulista (av. Paulista, 119, 10º andar, tel. 0/xx/11/
3179-3700)
Quanto: R$ 5 a R$ 20
Classificação: não indicado a menores
de 12 anos
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Crítica/"[REC]": Hit na web, terror espanhol decepciona e copia videogame Próximo Texto: Grupo encena Brecht com bonecos "de carne e osso" Índice
|