São Paulo, sexta-feira, 14 de novembro de 2008

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Crítica/teatro/"Rainha[(s)] - Duas Atrizes em Busca de um Coração"

Atrizes merecem cetros e louvores

Georgette Fadel e Isabel Teixeira superam riscos em ótima montagem de texto de Schiller, em cartaz no Sesc Paulista

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

O mundo pode tremer quando duas rainhas que disputam a mesma coroa se encontram. Foi para concretizar esta situação dramática que Friedrich Schiller escreveu, em 1800, sua peça de maturidade, "Maria Stuart".
No espetáculo "Rainha[(s)] -Duas Atrizes em Busca de um Coração", também é esta cena fatal que opera como núcleo organizador. De fato, as diferenças entre a dramaturgia desta "tragédia romântica" de Schiller e aquela criada pelas atrizes e encenadora da atual montagem são enormes.
Refletem maravilhosamente os contrastes entre o teatro, como se o conheceu até meados do século 20, e as novas formas espetaculares que artistas do teatro brasileiro contemporâneo vêm inventando.
A encenação de Cibele Forjaz é um feito extraordinário e não aconteceu por acaso. Para alcançá-lo ela amadureceu em várias montagens, algumas mais bem-sucedidas que outras, um certo modo de combinar a composição e o caos. Filha do Oficina, ela consolida com essas rainhas sua própria marca, ao mesmo tempo em que confirma a origem perfurando fundo. Mas o vinho raro da grande teatralidade não teria jorrado se não fosse o encontro com duas atrizes muito especiais: Isabel Teixeira e Georgette Fadel.
As duas chegam à cena como Isabel e Georgette e, mesmo assumindo as falas e os gestos das rainhas Maria Stuart e Elizabeth 1ª -da história da Inglaterra e da peça de Schiller-, prosseguirão até o final pontuando suas próprias histórias, opiniões e voracidades. Entregam-se enquanto compositoras, ao vivo, a uma síntese delas próprias com as personagens. Isto é mais que interpretar um papel servindo-se de uma voz previamente escrita.
Isto é criar uma voz a partir das próprias entranhas e, num jogo com essas rainhas míticas, reinar sobre a cena.

Sem concessões
Não é um plano de vôo fácil, nem é para qualquer um. Há que "ralar o coração", como confessam logo de saída. Este coração que pulsa virtual em um centro coroado é o motor que move a narrativa.
Não há a representação da peça de Schiller, com suas cenas e diálogos, nem há trama a seguir. Há sim um argumento: uma atriz está apaixonada pela heroína Maria Stuart, e desinteressada dos detalhes do jogo de forças políticas que a envolvem, o mundo dos homens. Desse nada, que é um desejo inicial, se tece o espetáculo na disposição de duas atrizes maduras vestirem, cada uma, suas potências dramáticas.
Isabel é Lady Maria, a serpente. Georgette é o cavalo Elizabeth. Esta segunda vem do mundo masculino, é a última a entrar em cena e se apresenta como barro vivo, moldada lenta e minuciosamente num excruciante exercício de sangramento, até ser, finalmente, explicitada na sua feminilidade. A outra é a "mulher-bomba", aquela que diante da decapitação certa prefere explodir em júbilo moral.
Tudo isto já está latente em Schiller. O que é novo e alvissareiro é o modo de usar e de fazer. Na linhagem de espetáculos como o "Ensaio Hamlet", da Cia. dos Atores, e "Da Gaivota", de Enrique Diaz, de que Isabel Teixeira participou, o clássico é reescrito pelas atrizes de seus idiossincráticos pontos de vista. No aproveitamento da técnica do contato improvisação do Nova Dança e das estruturas de improviso de Cristiane Paoli-Quito, com quem Georgette fez "Esperando Godot", de Beckett, escreve-se uma dramaturgia cênica aberta às variações.

Arte contemporânea
Costurando essas escrituras corporais e anímicas, há a intuição e o traço luminoso de Cibele Forjaz, que captura as partituras líricas criadas por cada uma das atrizes e as põe em diálogo cênico num desenho rigoroso e arrojado, cheio de nuances perigosas. As duas atrizes, como verdadeiras rainhas, não temem os riscos e se atiram na volúpia da encenação. Merecem seus cetros e mais louvores. Espetáculo-instalação que contracena com a arte contemporânea encarna, como diria Schiller, o espírito de seu tempo.


RAINHA [(S)] - DUAS ATRIZES EM BUSCA DE UM CORAÇÃO
Quando: de sex. a dom., às 20h30; até 21/12
Onde: Sesc Avenida Paulista (av. Paulista, 119, 10º andar, tel. 0/xx/11/ 3179-3700)
Quanto: R$ 5 a R$ 20
Classificação: não indicado a menores de 12 anos
Avaliação: ótimo



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