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CARLOS HEITOR CONY
A ladeira, as grutas, o mar e a mulher na geografia da memória
Muita cor e confusão neste sonho que acabei de ter,
na tarde do último domingo. Ia
num carro alto, esquisito, dirigido
pelo meu motorista. No banco de
trás, estava um amigo meu, o Esmeraldo, que nem sei por que entrou no sonho, acho que apenas
para testemunhar o que iria
acontecer -embora só a mim o
sonho interessasse.
O carro entrou pela rua Cabuçu
e dobrou a esquina que dava para
a rua em que nasci. Queria mostrar ao Esmeraldo a casa paterna
no alto da ladeira, mas o motorista fez uma manobra errada e pegou uma rua que ia dar na estação do Méier. Ao perceber o erro,
o motorista quis dar ré para corrigir o itinerário, mas eu decidi
continuar. Aquele trajeto era
também frequente em minha infância, eu o fazia para ir aos cinemas em volta daquela estação,
que era considerada a "rainha
dos trens da Central".
Orientei o motorista pelo novo
itinerário e logo desembocamos
numa rua que a geografia da memória dava como rua Hermengarda, que na realidade era plana, mas no sonho tinha diversos
níveis, uma escadaria monumental, com casas ajardinadas em cada lado. O carro conseguia descer
os muitos lances de escadas, e eu
admiti que tudo aquilo havia
mudado para melhor.
Mesmo assim, temi passar por
uma casa, em cujos fundos fui
obrigado a ficar escondido ao
tempo em que respondia a um
processo pela Lei de Segurança
Nacional, em 1965.
De repente, estávamos diante
da estação do Méier, que era feérica, lembrando uma estação de
metrô em Moscou, toda de mármore e cheia de lustres. Somente a
passarela, que ligava as duas avenidas que correm paralelas ao leito da Central, era a mesma dos
meus tempos de menino.
Eu disse ao Esmeraldo e ao motorista: ""Foi ali que, subindo
aquela escada com minha mãe,
esbarramos em dois frades franciscanos que desciam o mesmo
lance. Pedidas as desculpas de
praxe, a mãe me falou baixinho:
"Eles são frades. Levam uma vida
boa".".
A cena e a frase aconteceram na
realidade. No embrião de minha
vontade de entrar para a vida religiosa, estava aquela informação
que recebera de pessoa que julgava autorizada: se eu fosse frade,
levaria uma vida boa.
Mas o sonho continuou. Fizemos o caminho de volta e então
não havia mais carro, estávamos
a pé e tínhamos de subir a tal rua
cheia de escadas. De quando em
quando, os degraus eram interrompidos por grades cada vez
mais altas. Esmeraldo e o motorista não tinham problemas, facilmente pulavam o obstáculo.
Num deles, eu empaquei. Do outro lado da grade, os dois me esperavam e me incentivavam, cheguei a subir e a me agarrar em cima dele, mas não podia saltar.
Não por medo. Por uma impossibilidade que eu não compreendia.
Nisso, descobri que a grade estava no jardim de uma residência
de classe média alta. Olhando para dentro da casa, vi sua dona,
uma mulher de seus 40 anos, nem
bonita nem feia, em trajes caseiros, indo e vindo em sua rotina
doméstica.
Chamei-a. Expliquei a situação,
perguntei-lhe se poderia me ajudar. Sem se espantar, ela disse que
seria impossível o meu salto, eu
deveria pular para dentro da casa, ela mudaria de roupa e me levaria em seu carro, por um outro
caminho, até onde estavam o motorista e o Esmeraldo, já então
novamente dentro do esquisito
automóvel, que mais parecia um
inseto de patas descomunais.
Foi fácil pular para dentro da
casa. A mulher fora trocar de roupa, e eu me orientei facilmente
em seus domínios. Ela reapareceu, parecia mais jovem e mais
bonita, levou-me a seu carro numa garagem aos fundos.
Avisou-me de que a volta seria
maior por causa da mão e contramão das ruas que nos cercavam.
Mas, na primeira curva que fizemos, apareceu uma praia que logo reconheci ser a praia de São
Roque, em Paquetá, onde também passei parte da infância.
Um absurdo. Eu estava no
Méier, não havia mar ali pelas
imediações. Mas a mulher continuou o caminho, subiu uma ladeira e eu reconheci que estava
numa daquelas estradinhas na
ilha de Capri, que levam até Anacapri, o mar de azul profundo, as
rochas que se erguem como grutas saídas das entranhas da água.
Um sentimento de paz me fez
olhar para a mulher que dirigia o
carro. Ela parecia cada vez mais
desejável, tinha na boca um sorriso sacana.
Quis uma explicação para tudo
aquilo, a estação suburbana, a
praia de Paquetá, aquela paisagem em volta da ilha de Capri, as
grutas submersas, o cheiro e o
gosto do mar impossível.
Ela então me deu o nome dela.
Mara Ave. Podia ser uma ave-maria truncada, mas era Mara
Ave mesmo. Deu-me também o
seu endereço, e, por mais que eu
me esforçasse, não conseguia juntar as cinco letras do nome da rua
nem o seu respectivo número.
A mulher continuou com o sorriso sacana, deu uma guinada no
volante e então o mar de Capri
não era mais azul, mas verde, como é verde na Sardenha. Junto às
praias, as ondas eram brancas. E
eu me senti prisioneiro de tudo
aquilo -do mar, das ondas, de
Paquetá, da estação de trem- ,
prisioneiro da própria mulher,
acidente que brotou como uma
gruta na geografia da memória.
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