São Paulo, sexta-feira, 14 de dezembro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

A ladeira, as grutas, o mar e a mulher na geografia da memória

Muita cor e confusão neste sonho que acabei de ter, na tarde do último domingo. Ia num carro alto, esquisito, dirigido pelo meu motorista. No banco de trás, estava um amigo meu, o Esmeraldo, que nem sei por que entrou no sonho, acho que apenas para testemunhar o que iria acontecer -embora só a mim o sonho interessasse.
O carro entrou pela rua Cabuçu e dobrou a esquina que dava para a rua em que nasci. Queria mostrar ao Esmeraldo a casa paterna no alto da ladeira, mas o motorista fez uma manobra errada e pegou uma rua que ia dar na estação do Méier. Ao perceber o erro, o motorista quis dar ré para corrigir o itinerário, mas eu decidi continuar. Aquele trajeto era também frequente em minha infância, eu o fazia para ir aos cinemas em volta daquela estação, que era considerada a "rainha dos trens da Central".
Orientei o motorista pelo novo itinerário e logo desembocamos numa rua que a geografia da memória dava como rua Hermengarda, que na realidade era plana, mas no sonho tinha diversos níveis, uma escadaria monumental, com casas ajardinadas em cada lado. O carro conseguia descer os muitos lances de escadas, e eu admiti que tudo aquilo havia mudado para melhor.
Mesmo assim, temi passar por uma casa, em cujos fundos fui obrigado a ficar escondido ao tempo em que respondia a um processo pela Lei de Segurança Nacional, em 1965.
De repente, estávamos diante da estação do Méier, que era feérica, lembrando uma estação de metrô em Moscou, toda de mármore e cheia de lustres. Somente a passarela, que ligava as duas avenidas que correm paralelas ao leito da Central, era a mesma dos meus tempos de menino.
Eu disse ao Esmeraldo e ao motorista: ""Foi ali que, subindo aquela escada com minha mãe, esbarramos em dois frades franciscanos que desciam o mesmo lance. Pedidas as desculpas de praxe, a mãe me falou baixinho: "Eles são frades. Levam uma vida boa".".
A cena e a frase aconteceram na realidade. No embrião de minha vontade de entrar para a vida religiosa, estava aquela informação que recebera de pessoa que julgava autorizada: se eu fosse frade, levaria uma vida boa.
Mas o sonho continuou. Fizemos o caminho de volta e então não havia mais carro, estávamos a pé e tínhamos de subir a tal rua cheia de escadas. De quando em quando, os degraus eram interrompidos por grades cada vez mais altas. Esmeraldo e o motorista não tinham problemas, facilmente pulavam o obstáculo. Num deles, eu empaquei. Do outro lado da grade, os dois me esperavam e me incentivavam, cheguei a subir e a me agarrar em cima dele, mas não podia saltar. Não por medo. Por uma impossibilidade que eu não compreendia.
Nisso, descobri que a grade estava no jardim de uma residência de classe média alta. Olhando para dentro da casa, vi sua dona, uma mulher de seus 40 anos, nem bonita nem feia, em trajes caseiros, indo e vindo em sua rotina doméstica.
Chamei-a. Expliquei a situação, perguntei-lhe se poderia me ajudar. Sem se espantar, ela disse que seria impossível o meu salto, eu deveria pular para dentro da casa, ela mudaria de roupa e me levaria em seu carro, por um outro caminho, até onde estavam o motorista e o Esmeraldo, já então novamente dentro do esquisito automóvel, que mais parecia um inseto de patas descomunais.
Foi fácil pular para dentro da casa. A mulher fora trocar de roupa, e eu me orientei facilmente em seus domínios. Ela reapareceu, parecia mais jovem e mais bonita, levou-me a seu carro numa garagem aos fundos.
Avisou-me de que a volta seria maior por causa da mão e contramão das ruas que nos cercavam. Mas, na primeira curva que fizemos, apareceu uma praia que logo reconheci ser a praia de São Roque, em Paquetá, onde também passei parte da infância.
Um absurdo. Eu estava no Méier, não havia mar ali pelas imediações. Mas a mulher continuou o caminho, subiu uma ladeira e eu reconheci que estava numa daquelas estradinhas na ilha de Capri, que levam até Anacapri, o mar de azul profundo, as rochas que se erguem como grutas saídas das entranhas da água.
Um sentimento de paz me fez olhar para a mulher que dirigia o carro. Ela parecia cada vez mais desejável, tinha na boca um sorriso sacana.
Quis uma explicação para tudo aquilo, a estação suburbana, a praia de Paquetá, aquela paisagem em volta da ilha de Capri, as grutas submersas, o cheiro e o gosto do mar impossível.
Ela então me deu o nome dela. Mara Ave. Podia ser uma ave-maria truncada, mas era Mara Ave mesmo. Deu-me também o seu endereço, e, por mais que eu me esforçasse, não conseguia juntar as cinco letras do nome da rua nem o seu respectivo número.
A mulher continuou com o sorriso sacana, deu uma guinada no volante e então o mar de Capri não era mais azul, mas verde, como é verde na Sardenha. Junto às praias, as ondas eram brancas. E eu me senti prisioneiro de tudo aquilo -do mar, das ondas, de Paquetá, da estação de trem- , prisioneiro da própria mulher, acidente que brotou como uma gruta na geografia da memória.



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