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Nova loja de São Paulo, pioneira no gênero, transforma homens em drag queens
Tenda dos milagres
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
Funciona assim: cheia de maquiagem, a drag olha para o espelho e testa meia dúzia de fisionomias -alegrinha, alegre, alegrérrima. Quando encontra a feição
que lhe agrada, saca logo um tubinho de spray (na verdade, um fixador de cabelos alemão).
Espirra o líquido em todo o rosto, fechando levemente os olhos.
Sente que aquilo irrita a pele e
prejudica o aparelho respiratório,
mas drag que se preza ama o resultado. "Qualquer dor pela beleza." É o lema.
E o resultado... Bem, talvez se
pareça com o de um botox, toxina
que paralisa os músculos faciais
para disfarçar rugas. Por duas ou
três horas, o laquê deixará a pele
um tanto rígida e manterá quase
intacta a expressão esculpida
diante do espelho.
A drag saberá que está abafando
se esbarrar em uma colega de "bafon" e ouvir dela algo como:
"Noooossa, mona, que carão!
Passou vedacit hoje?".
O inacreditável "vedacit" é apenas um dos produtos oferecidos
(a R$ 38) por uma nova loja de
nome igualmente inusitado: Lá na
Kaká Tem. Inaugurada há três
meses no centro de São Paulo, segue o rastro de butiques que já
existem em Los Angeles, Paris ou
Rimini (Itália). O público-alvo:
travestis e drag queens.
Não, não se trata da mesma coisa. O termo "travesti" define os
homossexuais que modificam o
corpo para assumir a aparência
de mulher: tomam hormônios femininos, implantam próteses de
silicone, submetem-se às depilações definitivas. A imensa maioria sobrevive da prostituição.
Drags são personagens -homens que se vestem de maneira
teatral e exagerada ("se montam") para parodiar uma top model, uma cantora ou uma atriz.
Desde a década passada, frequentam ruidosamente a noite
paulistana. De dia, porém, confundem-se na multidão de marmanjos (os "bofes"). Usam roupas masculinas e, não raro, exercem profissões convencionais.
Quando se transformam, adotam apelidos de inspiração cômica (Natasha Rasha, Cindy Babado, Paulette Pink, Nanny People)
e costumam fazer shows em boates. Também animam festas, protagonizam telegramas falados e
atuam como "hostess" de casas
noturnas ou de eventos.
Pioneira no país, a loja que atende os dois grupos ocupa o primeiro andar de um edifício predominantemente residencial, onde só
moram gays assumidos. O predinho, malconservado, espreme-se
entre botecos e oficinas mecânicas da rua Amaral Gurgel, concorrido "point" de michês.
Para dar conta da notívaga
clientela, a butique abre às 14h e
fecha às 2h. Mesmo nos fins de semana, é comum encontrá-la de
portas escancaradas.
Se entrasse, Elke Maravilha choraria de emoção. Ali, podem-se
garimpar perucas espalhafatosas,
adereços de cabeça, bijuterias cintilantes, sandálias número 46 com
salto plataforma de 30 centímetros, vestidões, bolsinhas, peças
de brechó, lingeries, maquiagem
sortida, óculos à Elton John e perfumes, muitos perfumes. Há, ainda, esculturas. A do toureiro desinibido arrancaria urros da Elke.
Entre as grifes, nada de Gucci ou
Prada. Só Capadócia, Micheli Xis,
Marquinhos Gutierrez e DKBR,
marcas conhecidas no "mundinho". Tão conhecidas quanto as
gírias que boa parte da freguesia
utiliza para pedir os artigos. São
expressões tiradas do "pajubá", a
língua dos travestis, repleta de palavras em iorubá. Na loja, portanto, ninguém procura sapatos. Vai-se à caça de "apatás".
"Um versinho norteia minha vida: "geladeira vazia, mas modelão
e perfume em dia'", explica a "top
drag" Dimmy Kieer, 35, quando
lhe perguntam por que gasta, todo mês, uma média de R$ 2.000
com roupas e acessórios. Habitué
da butique, a meiga acaba de lançar um CD: "Look My Hair".
Outra drag, Kaká di Polly, 43,
apresenta-se como dona do négócio: "Oi, biscoitiiiinho". O diminutivo soa estranho na boca de alguém tão grande. Kaká (ou Carlos
Alberto Polycastro) mede 1m80 e
pesa 176 quilos.
Investiu R$ 15 mil e hoje contabiliza lucro mensal de R$ 3.000. É
o único vendedor da butique, que
emprega três funcionários (as): a
drag Cris Tall (estilista e costureira), a travesti Raquel Acioly (secretária) e o "gay performático"
Evandro Machado (maquiador e
cabeleireiro).
O quarteto dificilmente trabalha
"montado". Mas "monta" com
espantosa rapidez os clientes que
desejam se produzir na própria
loja. Curioso é que não somente
drags e travestis aparecem por lá.
Clubbers e prostitutas já descobriram o local. Rapazes que se declaram heterossexuais também.
Na terça-feira, um deles buscava
botas pretas, de salto alto, apertadíssimas e com canos que beiravam as coxas. Vestiu-as e passou a
tarde no predinho, andando de
um lado para outro.
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