São Paulo, sexta-feira, 14 de dezembro de 2001

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Nova loja de São Paulo, pioneira no gênero, transforma homens em drag queens

Tenda dos milagres

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Funciona assim: cheia de maquiagem, a drag olha para o espelho e testa meia dúzia de fisionomias -alegrinha, alegre, alegrérrima. Quando encontra a feição que lhe agrada, saca logo um tubinho de spray (na verdade, um fixador de cabelos alemão).
Espirra o líquido em todo o rosto, fechando levemente os olhos. Sente que aquilo irrita a pele e prejudica o aparelho respiratório, mas drag que se preza ama o resultado. "Qualquer dor pela beleza." É o lema.
E o resultado... Bem, talvez se pareça com o de um botox, toxina que paralisa os músculos faciais para disfarçar rugas. Por duas ou três horas, o laquê deixará a pele um tanto rígida e manterá quase intacta a expressão esculpida diante do espelho.
A drag saberá que está abafando se esbarrar em uma colega de "bafon" e ouvir dela algo como: "Noooossa, mona, que carão! Passou vedacit hoje?".
O inacreditável "vedacit" é apenas um dos produtos oferecidos (a R$ 38) por uma nova loja de nome igualmente inusitado: Lá na Kaká Tem. Inaugurada há três meses no centro de São Paulo, segue o rastro de butiques que já existem em Los Angeles, Paris ou Rimini (Itália). O público-alvo: travestis e drag queens.
Não, não se trata da mesma coisa. O termo "travesti" define os homossexuais que modificam o corpo para assumir a aparência de mulher: tomam hormônios femininos, implantam próteses de silicone, submetem-se às depilações definitivas. A imensa maioria sobrevive da prostituição.
Drags são personagens -homens que se vestem de maneira teatral e exagerada ("se montam") para parodiar uma top model, uma cantora ou uma atriz.
Desde a década passada, frequentam ruidosamente a noite paulistana. De dia, porém, confundem-se na multidão de marmanjos (os "bofes"). Usam roupas masculinas e, não raro, exercem profissões convencionais.
Quando se transformam, adotam apelidos de inspiração cômica (Natasha Rasha, Cindy Babado, Paulette Pink, Nanny People) e costumam fazer shows em boates. Também animam festas, protagonizam telegramas falados e atuam como "hostess" de casas noturnas ou de eventos.
Pioneira no país, a loja que atende os dois grupos ocupa o primeiro andar de um edifício predominantemente residencial, onde só moram gays assumidos. O predinho, malconservado, espreme-se entre botecos e oficinas mecânicas da rua Amaral Gurgel, concorrido "point" de michês.
Para dar conta da notívaga clientela, a butique abre às 14h e fecha às 2h. Mesmo nos fins de semana, é comum encontrá-la de portas escancaradas.
Se entrasse, Elke Maravilha choraria de emoção. Ali, podem-se garimpar perucas espalhafatosas, adereços de cabeça, bijuterias cintilantes, sandálias número 46 com salto plataforma de 30 centímetros, vestidões, bolsinhas, peças de brechó, lingeries, maquiagem sortida, óculos à Elton John e perfumes, muitos perfumes. Há, ainda, esculturas. A do toureiro desinibido arrancaria urros da Elke.
Entre as grifes, nada de Gucci ou Prada. Só Capadócia, Micheli Xis, Marquinhos Gutierrez e DKBR, marcas conhecidas no "mundinho". Tão conhecidas quanto as gírias que boa parte da freguesia utiliza para pedir os artigos. São expressões tiradas do "pajubá", a língua dos travestis, repleta de palavras em iorubá. Na loja, portanto, ninguém procura sapatos. Vai-se à caça de "apatás".
"Um versinho norteia minha vida: "geladeira vazia, mas modelão e perfume em dia'", explica a "top drag" Dimmy Kieer, 35, quando lhe perguntam por que gasta, todo mês, uma média de R$ 2.000 com roupas e acessórios. Habitué da butique, a meiga acaba de lançar um CD: "Look My Hair".
Outra drag, Kaká di Polly, 43, apresenta-se como dona do négócio: "Oi, biscoitiiiinho". O diminutivo soa estranho na boca de alguém tão grande. Kaká (ou Carlos Alberto Polycastro) mede 1m80 e pesa 176 quilos.
Investiu R$ 15 mil e hoje contabiliza lucro mensal de R$ 3.000. É o único vendedor da butique, que emprega três funcionários (as): a drag Cris Tall (estilista e costureira), a travesti Raquel Acioly (secretária) e o "gay performático" Evandro Machado (maquiador e cabeleireiro).
O quarteto dificilmente trabalha "montado". Mas "monta" com espantosa rapidez os clientes que desejam se produzir na própria loja. Curioso é que não somente drags e travestis aparecem por lá. Clubbers e prostitutas já descobriram o local. Rapazes que se declaram heterossexuais também.
Na terça-feira, um deles buscava botas pretas, de salto alto, apertadíssimas e com canos que beiravam as coxas. Vestiu-as e passou a tarde no predinho, andando de um lado para outro.



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