|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LITERATURA
Escritor australiano DBC Pierre é a primeira grande atração confirmada para a Bienal do Livro do Rio, em maio
"Patinho Feio" das letras aporta no Brasil
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Ele é a Gata Borralheira. Não,
melhor, ele é o Patinho Feio da literatura contemporânea. Como
tal, era um troncho, um desvalorizado, até desabrochar como uma
Gisele Bündchen das letras.
A história de Peter Finlay é, em
verdade, quase tão boa quanto a
de "borralheiras" e "feios", quase
tão boa (ou melhor) do que a de
seu próprio romance, "Vernon
God Little", que será lançado na
próxima semana no Brasil, pela
editora Record. Quando saiu, na
Inglaterra, em janeiro de 2003, o
livro era um livro qualquer, assinado por um tal DBC Pierre. Aos
poucos o romance foi crescendo,
no boca a boca, resenha a resenha,
até ser indicado para a lista inicial
do Booker Prize, prêmio mais
prestigiado da língua inglesa .
Foi só com "Vernon God Little"
já na reta final do Booker que a
verdadeira história de seu autor
saiu às ruas. Em reportagem
bombástica nos círculos das letras, o jornal britânico "The Guardian" revelou que o escritor tinha
um passado de altas picaretagens
(extraliterárias, diga-se), relações
barras-pesadas com heroína e cocaína, um tiro tomado e trapaças
como a venda da casa de um amigo sem que este fosse consultado
ou recebesse algum tostão.
Nascido na Austrália, criado no
México e com vida errante por lugares como os subúrbios de Londres ou o Texas, onde ambienta
"VGL", Finlay se escondera neste
seu romance de estréia atrás do
pseudônimo DBC Pierre, que significa Dirty But Clean Pierre
(Pierre Sujo, Mas Limpo).
A brincadeira vinha do apelido
de seu tempo de junkie, Dirty
Pierre. Finlay, ou DBC Pierre, como queira, agora estava "clean" e
a literatura era o modo como ele
fazia sua "última tentativa", depois de tentar emplacar como cartunista, cineasta, ou caçador de
tesouros no México (sério).
E ele chegou lá. Achou seu baú
de moedas de ouro com seu primeiro livro: ganhou o Booker Prize 2003 e seus R$ 250 mil (mais
ganhos indiretos, como vendagens "sextuplicadas" de seu livro e
venda de direitos para o cinema).
Pierre, 42, hoje morando em
uma cidadezinha no interior da
Irlanda, pouco aproveitou de toda
essa gaita. Usou o que ganhou para começar a pagar credores.
Dirty But Clean, ele diz que hoje
é um rapaz respeitável, limpo,
limpo. Em entrevista à Folha, a
primeira que dá ao Brasil, ele
mostra que não chega a ser Pierre,
o Totalmente Asséptico. Escalado
como primeira grande atração da
Bienal do Rio, em maio, ele brinca
que seus planos são de, assim que
chegar aqui, pegar o maior copo
de caipirinha que encontrar e dar
um jeito de perder sua passagem
de volta. Leia trechos da conversa.
Folha - Você disse ao ganhar o
prêmio que o sentimento de culpa
foi a única pressão que o levou a escrever. Seu estoque de remorso é
grande o bastante para que você
continue na literatura?
DBC Pierre - Caceta, eu tenho
culpa suficiente para construir catedrais. Verdade que agora a
energia está mudando. Existe
pressão para que eu fique mais refinado, o que aumenta o desafio.
Mas sinto que tenho sido uma espécie de artista durante toda a minha vida, de modo que as fantasias sempre me acompanharam.
Remorso foi só o empurrão para o
compromisso de me expressar
em 300 páginas de palavras, o que
é bem difícil. Escrever um romance é como tentar pintar uma natureza-morta de ratos vivos.
Folha - Antes de "VGL" você chegou a tentar contos ou romances?
Pierre - Não. Contos são uma
modalidade muito difícil, um passo em direção à poesia, onde cada
palavra é calculadamente importante. Em um romance você tem
direito de perder-se dentro de
uma pintura mais ampla. Como
eu havia tentado pintura, desenho, fotografia, eu sempre senti
que um dia poderia pintar com
palavras, mas bem no futuro.
Embora adore palavras não tenho uma educação verdadeira em
literatura, em inglês ou em qualquer outra coisa. Foi só a explosiva pressão da vida que me fez tentar. Uma das situações de vida
mais poderosas que existe é não
ter nada a perder. Agora tenho de
tentar não perder meu poder.
Folha - Seu romance lida com temas barras-pesadas como pena de
morte ou assassinatos em massa
em escolas. Mas "VGL" não é um livro pesado. Por que você usou assuntos cascudos para sua comédia?
Pierre - Porque são temas tão
trágicos que são naturalmente cômicos. Neste livro sinalizo como a
realidade é hoje muito mais ridícula do que qualquer ficção. Chegamos à era em que tragédia e comédia se acharam de verdade.
Folha - O diretor do Booker Prize,
John Carey, disse, ao anunciar seu
prêmio, que seu livro era o reflexo
da relação de fascínio e alarme que
o resto do mundo tinha com a América moderna. Concorda?
Pierre - Concordo. Observar os
EUA de uma forma global é fascinante e assustador porque os
EUA são a ponta da linha de nossa
cultura e a coisa está se desenrolando sem controle. Assim nos
vemos chegando àquela área da
irracionalidade generalizada.
Folha - Seu livro me lembrou uma
versão contemporânea de "O Apanhador no Campo de Centeio", de
Salinger. Você vê semelhança de
"VGL" com este ou outros livros?
Pierre - Não li muito nos anos
que cercaram a escrita de "Vernon". Sou um leitor vagaroso.
Mas gosto de literatura e, no final
da adolescência, tiveram grande
impacto em mim obras como
"On the Road", de Kerouac. Li "O
Apanhador" no tempo de escola,
e me lembro de ter pensado quão
genial seria escrever uma obra literária do ponto de vista de uma
criança qualquer. Isso me deu um
sentimento de liberdade, porque
até então vinha lendo Chaucer,
Milton e Shakespeare, que, quando você é um garoto, é algo como
seguir a sua mãe nas compras.
Folha - No passado você chegou a
fazer literalmente uma caça ao tesouro, no México. Ganhar o Booker
de repente teve este sabor?
Pierre - É uma passagem pouco
conhecida de minha vida, mas há
20 anos eu realmente fiz parte de
uma caravana que tentava achar
um vale perdido onde haveria restos do Império Azteca, incluindo
parte de seu tesouro. Literatura é
um tesouro mais viável. Mas para
consegui-lo você deve viver em
cavernas e caçá-la todos os dias.
Folha - Você virá para Bienal do
Livro do Rio. Ouvi dizer que seu
próximo romance terá passagens
no Brasil. Você já esteve aqui?
Pierre - Venho esperando por
toda a minha vida uma oportunidade de visitar o Brasil. Logo que
chegar aí vou colocar em prática
meu plano de me atracar em algum canto com uma grandiosa
caipirinha e dar um jeito de perder minha passagem de volta.
Não conheço muito daí, embora
tenha lido algo de Rubem Fonseca e de Autran Dourado, mas tenho o feeling de que encontrarei
almas muito férteis.
Folha - Você vai continuar sendo
o Pierre Sujo, mas Limpo?
Pierre - Por enquanto sim. Quero ser Pierre Limpo, apenas. Não
sei se isso será possível depois que
eu for para o Brasil. Sou facilmente corruptível diante de mulheres
bonitas, música e bebida.
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Prêmio que revelou DBC é "revelação" Índice
|