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Marsicano narra "trip" literária
Citarista relembra três décadas de viagens poéticas e insólitas no recém-lançado "Crônicas Marsicanas'
Músico relata casos como prisão por suspeita de espionagem em Marrocos e perseguição por assaltantes e pedintes em Mumbai
CARLOS MINUANO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
De Cambridge a São Paulo,
passando por Macau, Mumbai,
Marrocos, Tanger, Cairo e Nova York. Essas são apenas algumas das quase 50 cidades visitadas pelo citarista Alberto
Marsicano ao longo de algumas
décadas na estrada.
As viagens, repletas de histórias insólitas e personagens
"sui generis", compõem o recém-lançado "Crônicas Marsicanas". Apesar das referências
geográficas e da dimensão biográfica, não se trata de um livro
sobre turismo ou de memórias.
Transcende ambos, diz o autor.
"É uma viagem por meio da
poesia. Os lugares são cenários,
o cerne é a literatura."
De fato, as crônicas, que começaram a ser publicadas na
extinta revista de quadrinhos
"Animal", entre 1988 e 1991, revelam um olhar que coloca o
autor a quilômetros de um turista convencional. Quase sempre sem dinheiro, dormindo
em hotéis de quinta categoria,
chegou a ser preso por suspeita
de espionagem em Marrocos e
foi perseguido por assaltantes e
pedintes em Mumbai, entre outras vivências.
A linguagem fragmentada,
ora poética, ora caricata, lúdica
ou mística, retrata de maneira
audaz a vida real -ou irreal-
muito além dos cartões-postais
nas mais variadas e inóspitas,
regiões do planeta.
"A realidade oferece as cenas
mais fantásticas possíveis", observa Marsicano. Ele garante
que as histórias são todas reais,
mas que, em alguns casos, foram apenas pretextos para passear por culturas que conheceu
nas dezenas de traduções que
fez. Além da cítara, que aprendeu com o indiano Ravi Shankar, e da graduação em filosofia
pela USP, Marsicano é um tradutor de mão cheia.
O leitor que se aventurar pelas páginas de "Crônicas Marsicanas" vai se deparar com alguns idiomas traduzidos por
ele. Estão incluídos aí o francês,
o grego, o japonês, o tupi-guarani, o árabe andaluz e até o
egípcio hieroglífico.
Luminares
A coleção de encontros com
luminares de várias áreas é outro ponto alto da obra. Nick Cave, Frank Zappa, Ronald Biggs,
Joey Ramone e Júlio Cortázar
estão na lista de notáveis com
os quais o citarista se encontra.
Tanto no visual quanto no estilo, próximo do novo jornalismo (gênero de reportagem que
mistura literatura e não-ficção), Alberto Marsicano destaca a influência de "Volta ao Dia
em 80 Mundos", de Cortázar
(1914-1984).
Mas a relação não pára por aí.
Assim como em "Rayuela"
(também do escritor argentino), o livro não segue uma ordem cronológica. "Pode ser lido
aleatoriamente começando por
qualquer história."
"Crônicas Marsicanas" conduz o leitor ao encontro de nomes como Rimbaud, Baudelaire, Blake, Breton, Wordsworth,
Shelley, Laforgue, poetas arábico-andaluzes e haicaístas japoneses, além de trazer citações
que vão de James Joyce a
Manu Chao.
O autor acredita que, de posse desse acervo, que contém o
néctar da poesia, o leitor seria
iniciado na essência do assunto, ficando livre da obrigação de
ler milhares de livros ruins.
"Obras geralmente obrigatórias em escolas e universidades
devido a pretensos mestres literários", acrescenta.
Ver para crer
Ao ser questionado sobre a
veracidade de certas crônicas,
pouco críveis, ele insiste: "São
reais. Algumas podem inclusive
ser conferidas visualmente em
sites como o YouTube". Por isso, aliás, o livro vem repleto de
notas de rodapé com links relacionados com textos, espaços
geográficos e trilhas sonoras,
explica. Marsicano cita o exemplo da ocasião em que tocou no
mais tradicional terreiro de
candomblé do Brasil, o Gantois,
em Salvador. "Fui o primeiro a
receber o aval dos orixás, por
meio dos búzios, para tocar um
instrumento alheio ao ritual",
diz.
Enquanto o artista improvisava um acorde para a filmagem do cineasta Goffredo Telles Neto, um bode arisco que
seria sacrificado escapou. "Ele
veio embaladão e furioso e, literalmente, roubou a cena", conta. "Em seguida, o animal parou
e começou a lamber a cítara."
Claro que ninguém acreditaria
nessa história, mas o vídeo que
registrou o fato pode ser facilmente localizado na internet
-no YouTube, faça uma busca
por "Brasilindia". É realmente
ver para crer.
Uma das histórias mais bizarras do livro se passa em
Mumbai na década de 90. A
crônica se encerra no momento em que o citarista estava
prestes a ser esfaqueado no
Prince Hotel, um "treme-treme" em que ficou hospedado,
cheio de junkies e marginais de
todos os tipos. No saguão de entrada, um enorme pôster do
cantor Prince. "O manager do
local queria ser sósia do pop
star", justifica. Mas, segundo
ele, o "melhor", começou depois, "sem dinheiro, quase ilegal na Índia e a ponto de perder
a passagem de volta", lembra.
"Havia feito a reserva por telefone, conforme indicação no
verso da passagem, mas, chegando em Mumbai, verifiquei
que não havia reserva e não tinha comprovante", recorda o
artista. A família, no Brasil, não
podia ajudar -o bloqueio de dinheiro do plano Collor dificultava as coisas. Desesperado, enviou um fax para a redação da
Folha, explicando a situação
dramática.
Jornalistas entraram em
contato com a British Airways,
explicando o caso do músico
brasileiro que estaria correndo
risco por não conseguir embarcar. O contato gerou resultados, e Marsicano foi autorizado
a embarcar no mesmo dia. "A
Folha salvou minha vida!",
conclui o músico.
CRÔNICAS MARSICANAS
Autor: Alberto Marsicano
Editora: L&PM
Quanto: R$ 28 (168 págs.)
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