São Paulo, terça-feira, 15 de janeiro de 2008

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Marsicano narra "trip" literária

Citarista relembra três décadas de viagens poéticas e insólitas no recém-lançado "Crônicas Marsicanas'

Músico relata casos como prisão por suspeita de espionagem em Marrocos e perseguição por assaltantes e pedintes em Mumbai

CARLOS MINUANO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

De Cambridge a São Paulo, passando por Macau, Mumbai, Marrocos, Tanger, Cairo e Nova York. Essas são apenas algumas das quase 50 cidades visitadas pelo citarista Alberto Marsicano ao longo de algumas décadas na estrada.
As viagens, repletas de histórias insólitas e personagens "sui generis", compõem o recém-lançado "Crônicas Marsicanas". Apesar das referências geográficas e da dimensão biográfica, não se trata de um livro sobre turismo ou de memórias. Transcende ambos, diz o autor.
"É uma viagem por meio da poesia. Os lugares são cenários, o cerne é a literatura."
De fato, as crônicas, que começaram a ser publicadas na extinta revista de quadrinhos "Animal", entre 1988 e 1991, revelam um olhar que coloca o autor a quilômetros de um turista convencional. Quase sempre sem dinheiro, dormindo em hotéis de quinta categoria, chegou a ser preso por suspeita de espionagem em Marrocos e foi perseguido por assaltantes e pedintes em Mumbai, entre outras vivências.
A linguagem fragmentada, ora poética, ora caricata, lúdica ou mística, retrata de maneira audaz a vida real -ou irreal- muito além dos cartões-postais nas mais variadas e inóspitas, regiões do planeta.
"A realidade oferece as cenas mais fantásticas possíveis", observa Marsicano. Ele garante que as histórias são todas reais, mas que, em alguns casos, foram apenas pretextos para passear por culturas que conheceu nas dezenas de traduções que fez. Além da cítara, que aprendeu com o indiano Ravi Shankar, e da graduação em filosofia pela USP, Marsicano é um tradutor de mão cheia.
O leitor que se aventurar pelas páginas de "Crônicas Marsicanas" vai se deparar com alguns idiomas traduzidos por ele. Estão incluídos aí o francês, o grego, o japonês, o tupi-guarani, o árabe andaluz e até o egípcio hieroglífico.

Luminares
A coleção de encontros com luminares de várias áreas é outro ponto alto da obra. Nick Cave, Frank Zappa, Ronald Biggs, Joey Ramone e Júlio Cortázar estão na lista de notáveis com os quais o citarista se encontra.
Tanto no visual quanto no estilo, próximo do novo jornalismo (gênero de reportagem que mistura literatura e não-ficção), Alberto Marsicano destaca a influência de "Volta ao Dia em 80 Mundos", de Cortázar (1914-1984).
Mas a relação não pára por aí. Assim como em "Rayuela" (também do escritor argentino), o livro não segue uma ordem cronológica. "Pode ser lido aleatoriamente começando por qualquer história."
"Crônicas Marsicanas" conduz o leitor ao encontro de nomes como Rimbaud, Baudelaire, Blake, Breton, Wordsworth, Shelley, Laforgue, poetas arábico-andaluzes e haicaístas japoneses, além de trazer citações que vão de James Joyce a Manu Chao.
O autor acredita que, de posse desse acervo, que contém o néctar da poesia, o leitor seria iniciado na essência do assunto, ficando livre da obrigação de ler milhares de livros ruins. "Obras geralmente obrigatórias em escolas e universidades devido a pretensos mestres literários", acrescenta.

Ver para crer
Ao ser questionado sobre a veracidade de certas crônicas, pouco críveis, ele insiste: "São reais. Algumas podem inclusive ser conferidas visualmente em sites como o YouTube". Por isso, aliás, o livro vem repleto de notas de rodapé com links relacionados com textos, espaços geográficos e trilhas sonoras, explica. Marsicano cita o exemplo da ocasião em que tocou no mais tradicional terreiro de candomblé do Brasil, o Gantois, em Salvador. "Fui o primeiro a receber o aval dos orixás, por meio dos búzios, para tocar um instrumento alheio ao ritual", diz.
Enquanto o artista improvisava um acorde para a filmagem do cineasta Goffredo Telles Neto, um bode arisco que seria sacrificado escapou. "Ele veio embaladão e furioso e, literalmente, roubou a cena", conta. "Em seguida, o animal parou e começou a lamber a cítara."
Claro que ninguém acreditaria nessa história, mas o vídeo que registrou o fato pode ser facilmente localizado na internet -no YouTube, faça uma busca por "Brasilindia". É realmente ver para crer.
Uma das histórias mais bizarras do livro se passa em Mumbai na década de 90. A crônica se encerra no momento em que o citarista estava prestes a ser esfaqueado no Prince Hotel, um "treme-treme" em que ficou hospedado, cheio de junkies e marginais de todos os tipos. No saguão de entrada, um enorme pôster do cantor Prince. "O manager do local queria ser sósia do pop star", justifica. Mas, segundo ele, o "melhor", começou depois, "sem dinheiro, quase ilegal na Índia e a ponto de perder a passagem de volta", lembra.
"Havia feito a reserva por telefone, conforme indicação no verso da passagem, mas, chegando em Mumbai, verifiquei que não havia reserva e não tinha comprovante", recorda o artista. A família, no Brasil, não podia ajudar -o bloqueio de dinheiro do plano Collor dificultava as coisas. Desesperado, enviou um fax para a redação da Folha, explicando a situação dramática.
Jornalistas entraram em contato com a British Airways, explicando o caso do músico brasileiro que estaria correndo risco por não conseguir embarcar. O contato gerou resultados, e Marsicano foi autorizado a embarcar no mesmo dia. "A Folha salvou minha vida!", conclui o músico.


CRÔNICAS MARSICANAS
Autor:
Alberto Marsicano
Editora: L&PM
Quanto: R$ 28 (168 págs.)


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