São Paulo, quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

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Cássia Kiss estrela peça com olhar duro sobre família

Com direção de Ulysses Cruz, "O Zoológico de Vidro" é baseado em obra com tintas autobiográficas de Tennessee Williams

Peça, que costuma ser montada como "À Margem da Vida", estreia amanhã no Sesc Anchieta; sarcasmo dos diálogos é um diferencial

LUCAS NEVES
DA REPORTAGEM LOCAL

A atriz Cássia Kiss, 51, matriculou a filha numa "escola dificílima" do Rio para lhe garantir a (suposta) preparação ideal para o vestibular. A menina pegou recuperação em matemática e só escapa da reprovação se ficar mais um ano no tal colégio. Mas não quer.
Pronto: com a pequena encruzilhada familiar, Cássia pôde entender o "gostar errado" da mãe dominadora Amanda Wingfield, sua personagem na peça "O Zoológico de Vidro", do norte-americano Tennessee Williams (1911-1983). A montagem dirigida por Ulysses Cruz estreia amanhã, em São Paulo. "Eu, uma mulher moderna, atriz, que leio muito, faço cagada em nome da felicidade da minha filha. Preciso aprender a ouvi-la. O autoritarismo de Amanda é o jeito desgraçado dela e de a grande maioria das mães se relacionarem com os filhos, por meio de um amor que aprisiona", diz ela.
No texto, habitualmente encenado no Brasil como "À Margem da Vida", Amanda é uma mulher de meia-idade abandonada por um tipo que "se apaixonou pelas chamadas de longa distância e resolveu atendê-las pessoalmente".
Ela incumbe o caçula, Tom, funcionário de um depósito de sapatos que é o arrimo da casa, de encontrar um pretendente para sua irmã, Laura. Por conta de um defeito na perna, a jovem desenvolve uma timidez patológica -seus confidentes solitários são os animaizinhos de vidro de sua coleção, frágeis como sua autoconfiança. E é assim, como um bicho franzino e convalescente, que ela é tratada pela mãe. Tom, de seu lado, encarna o animal arisco, chucro, cujo instinto de liberdade Amanda tolhe permanentemente. Antes de deixar a casa-jaula para viver de aventura (como fazem os heróis que espia no cinema), ele deve encontrar "alguém que seja bem-intencionado -e que não beba" para livrar a irmã da solteirice.
"Ele é um personagem em fuga. Seu grande desafio é sair da tumba sem tirar os pregos, como vê um mágico fazer certa noite em um show de variedades. Como deixar essa família sem destruir tudo, sendo ele o provedor?", explica Kiko Mascarenhas, que interpreta Tom.
Memória
A trama, ambientada na época da Grande Depressão (meados da década de 1930) em St. Louis (Missouri), é narrada pela chave da memória. Um Tom que rodou o mundo depois de se filiar à Marinha Mercante lembra, com uma nota de pesar, os entreveros com a mãe e a solidão impenetrável da irmã.
A costura de cenas tem um intuito claro: expiar uma certa culpa -afinal, como pontifica Amanda, "as coisas quase sempre acabam mal".
Em 1944, a primeira montagem de "O Zoológico de Vidro" ("The Glass Menagerie", no original) projetou o nome de Tennessee Williams na cena teatral dos EUA. Consta que a família do dramaturgo foi a principal inspiração para o texto. A mãe dele teria servido de molde a Amanda, e Tom seria o alter ego do autor.
Laura, por sua vez, tem clara origem em Rose, irmã de Williams que sofria de esquizofrenia e foi submetida (com autorização dos pais, para desgosto do dramaturgo) a uma das primeiras lobotomias realizadas nos EUA. Em cena, essa matriz grave, doída, é arejada de quando em vez pelo sarcasmo dos diálogos entre Tom e Amanda. Nas 12 apresentações "de aquecimento" em Indaiatuba (SP), conta o elenco, a plateia se esbaldava com a acidez das trocas.

Riso nervoso
"O público quase ria demais, sobretudo no fim, quando a coisa toma ares de tragédia", diz Cássia, que interrompe aqui um hiato de sete anos no teatro. "Mas é um riso nervoso, de incômodo, de se ver naquela família", sugere Erom Cordeiro, que interpreta Jim, o pretendente recrutado por Tom.
"O nosso desafio é controlar essa oscilação, indicar "aqui escurece, tem sombra", orquestrar os nossos tons para que a plateia nos acompanhe", completa Mascarenhas.


O ZOOLÓGICO DE VIDRO
Quando: estreia amanhã, às 21h; sex. e sáb., às 21h; dom., às 19h; até 22/2
Onde: teatro Sesc Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, SP, tel. 0/xx/11/ 3234-3000)
Quanto: R$ 20
Classificação: não indicado a menores de 14 anos



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