LÚCIO RIBEIRO
Editor interino da Ilustrada

A trajetória mítica de um herói clássico transposta para os dias de hoje, na pele de um sujeito qualquer em um lugar qualquer, narrada com habilidade a partir de... uma mesa de baralho.
Não é blefe. "Cartas na Mesa", produção americana que estréia hoje no país, com o galã Matt Damon e o ótimo Edward Norton liderando um elenco de primeira, é um bom motivo para uma esticada aos cinemas.
Sonhos, romance, fidelidade. Brigas, obstáculos, a superação. E o tradicional final que na verdade indica o eterno recomeço do herói. Tudo narrado pela linguagem do carteado, o corte, as apostas, a embaralhada, os sinais, a parceria.
Acontece de o tal herói ser Matt Damon, Mike no filme, rapaz que leva a vida entre a faculdade de direito e a prática profissional de pôquer. Habilidade ímpar adquirida na infância, que o leva a perder para depois recuperar fortunas em clubes do submundo de Nova York e arredores.
O desafio de Mike não demora a chegar em "Cartas na Mesa". No começo do filme, em um ímpeto próprio de jogador, ele resolve arriscar US$ 30 mil (todo o dinheiro que custearia seus anos de faculdade) em uma partida. E perde. O desafio é recomeçar.
Os personagens-satélites de Mike: Jo (Gretchen Mol), a namorada, que restaura a honra ferida do amado, que em troca promete largar a jogatina.
Tem seu melhor amigo, Worm (Norton), a quem Mike deve uma lealdade fraternal. O negócio é que Worm entra na história no dia em que sai da cadeia, para na mesma noite levar Mike de volta às cartas.
Worm não tarda a aumentar a encrenca de Mike, que de tão leal assume as dívidas de jogo do amigo, passando a se entender com Teddy KGB, chefão da máfia russo-americana, outro papel afetado de John Malkovich. Foi Teddy o sujeito que faturou os US$ 30 mil de Mike.
A luz na vida de Mike vem do jogador experiente interpretado por John Turturro, que lhe transmite dicas preciosas de como não ser um "pato" na mesa. E vem ainda pelo professor Petrovsky (Martin Landau), cujos ensinamentos resgatam a força perdida de Mike e o encoraja a lutar contra o destino (leia-se jogar para o alto a vida acadêmica e se entregar ao pôquer).
"Cartas na Mesa" resvala na estética noir, com um clima romantizado de um esporte caro aos filmes americanos dos anos 40 e uma narrativa ácida na primeira pessoa. Mas só resvala, porque filme noir é sobre perdedores. E os heróis clássicos no final não perdem nem ganham. Nunca.