São Paulo, terça-feira, 15 de fevereiro de 2000


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ENTREVISTA
"Prêmio é um acidente na vida de um artista"

especial para a Folha

Folha - Muito pouco, hoje em dia, se fala da obra das pessoas. A identidade do autor sumiu dentro da obra. Tudo é relacionado a uma indústria. Isso incomoda você?
Diegues -
Muito. Você tocou num assunto que me incomoda há anos. O cinema ser tratado como produto que está sempre ligado a dinheiro é uma coisa que me incomoda muitíssimo, infelizmente. Isso, às vezes, é até estimulado pelos próprios artistas.

Folha - Estimulado em que sentido?
Diegues -
Se, no Brasil, nós tivéssemos mais produtores, quem sabe os produtores ocupariam esse espaço e os artistas poderiam falar mais de arte e menos de dinheiro, produção, custo, renda. Isso começou, na verdade, nos anos 30, quando Irving Talberg, que era um extraordinário produtor da Metro, um gênio, inventou essa coisa de fazer a promoção dos filmes pelo custo deles, para impressionar os investidores de Wall Street. E, por acaso, isso impressionou o público e ficou eternamente ligado à idéia de promoção do filme, à idéia do seu custo, do seu resultado. Nunca ninguém pergunta, por exemplo, a João Ubaldo Ribeiro quanto custou o livro dele, ou ao Caetano Veloso quanto custou o disco dele.

Folha - Mas o cinema sempre está relacionado a um custo.
Diegues -
É uma maldição em cima do cinema e que eu acho deplorável. Até hoje em dia, você não fala nem mais filme, você fala produto. Isso é um absurdo. Artista nenhum vai trabalhar, vai dar o que ele pode dar, sob essa pressão.

Folha - Conheço muito diretor que pega metade da verba que foi concedida para um espetáculo e bota no apartamento e o resto, os outros 50%, são investidos no espetáculo. Mas tem milhões de pessoas nessa "trade", nessa indústria, vamos dizer, que não são artistas, e eu acho que são por eles que a gente, que a imprensa, está fazendo esse escândalo todo.
Diegues -
E o mais interessante é o seguinte: a imprensa brasileira passou anos dizendo que o cinema brasileiro tinha de ir para o mercado. Quando foi, reclama.

Folha - Agora que está no mercado!
Diegues -
E, quando a gente vai, eles reclamam.

Folha - É.
Diegues -
Está certo? Bota a polícia em cima, apura e prende. Quando houve o escândalo do banco Nacional, ou do banco Econômico, ninguém fechou o sistema bancário brasileiro, fecharam os bancos que estavam errados, não é verdade? Então é isso o que tem de ser feito.

Folha - Essa é uma analogia perfeita, realmente.
Diegues -
É lógico, ninguém fechou o sistema bancário. Ninguém foi lá e fechou todos os bancos porque o banco Nacional fez falcatrua, ou o banco Econômico estava errado. Isso não aconteceu. Então é a mesma coisa, não é? Eu não sou paranóico, não acho que a imprensa brasileira persiga o cinema brasileiro. Acho que existe a revista "Veja", que é uma revista criminosa, que faz artigos que terminam, como fez recentemente, dizendo que o Brasil nunca terá uma cultura própria. Então eu acho que é uma perseguição idiossincrática, cujos motivos eu nem sei quais são, mas é evidentemente idiossincrática, injusta e desonesta. Agora, a imprensa brasileira, em geral, pelo contrário, até dá bastante espaço ao cinema brasileiro.

Folha - Mas dá mais espaço ainda a um escândalo....
Diegues -
Mas ela gosta de escândalo, gosta das coisas que não dão certo. É isso.

Folha - E a que você atribui isso?
Diegues -
Eu acho que com relação ao cinema no Brasil existem duas razões, e pode ser que eu esteja errado: uma de caráter específico-cinematográfico, e outra de caráter cultural-brasileiro.
A específico-cinematográfico é que existe uma velha tradição de que o Brasil não pode fazer cinema. É uma espécie de autocomiseração, de incompetência, como se o cinema fosse uma tecnologia muito avançada para nós, pobres selvagens. Eu me lembro que, quando era adolescente, não pensava em ser cineasta, mas adorava cinema. Lembro-me de ler no jornal que a língua portuguesa não dava para cinema. Estava escrito nos jornais nos anos 50, nos anos 60.

Folha - Bom, mas aí houve o cinema novo e mudou tudo isso.
Diegues -
Mas o cinema novo não chegou a mudar tudo isso porque aí vem outro negócio, eles ganham prêmio fora do Brasil, mas os filmes não dão dinheiro, não dão público, o que, aliás, também não é verdade. O cinema novo só deu certo como movimento porque todos nós, além dos prêmios e do sucesso artístico que nossos filmes tiveram, fizemos pelo menos um filme que foi sucesso de público. Mas, voltando àquela coisa anterior, além do motivo puramente senatorial existe também o motivo cultural. É aquela coisa. Aí veio aquela tradicional e clássica citação do Antônio Carlos Jobim que sucesso no Brasil é uma ofensa pessoal.

Folha - Mas não é na música.
Diegues -
De certo modo é, porque quando você começa a se destacar muito na música imediatamente gera um certo desconforto no crítico musical. Eu acho que existe uma coisa, eu sou totalmente português, eu adoro que o Brasil seja português...

Folha - E eu detesto.
Diegues -
Eu não tenho nenhum problema quanto a isso, eu adoro. É porque a gente não desenvolve as qualidades portuguesas, a gente fica desenvolvendo os defeitos....o isolamento, o derrotismo, o sentimento de impotência, que acabam virando pessimismo. O sentimento de autocrítica, mas, quando a autocrítica vira autoflagelação, detesto isso.

Folha - Essa pergunta é uma pequena tese minha. É o seguinte: vamos tocar num ponto muito específico, e acho que "Orfeu" é um ponto muito específico dentro disso. Eu acho um absurdo que o mundo todo tenha sido levado por uma febre naturalista, realista. Eu acho que culpa disso, de uma certa maneira, é o consumo desvairado de filmes de ação, cada vez mais preocupados em fazer uma equação possível entre o efeito especial e o desempenho do ator naturalista dentro dele, como se não existisse uma outra dimensão que cuidasse desses fenômenos que a gente chama de efeitos especiais. É cobrada uma postura como diretor de ator. Nos filmes, ouço muito isso. Com muita frequência, cada ator está dirigido de uma forma diferente, como se não houvesse unificação. Eu vejo nisso uma tremenda virtude na medida em que você é um diretor de símbolos. Você faz aquele cinema que eu, por exemplo, a minha geração, considera como sendo o cinema verdadeiro. Você não está tentando equacionar cinema com o cotidiano das ruas de qualquer cidade do mundo. Como é que você responde a esse tipo de crítica?
Diegues -
Olha, eu acho isso um absurdo. Desde o meu primeiro filme eu tento desenvolver a idéia de que as pessoas não são iguais no mundo, e que essa idéia do indivíduo é indissociável da idéia de mundo, ou seja, cada indivíduo está no mundo para ser ele e não para ser o outro. Então os meus atores são dirigidos conforme cada um é.

Folha - Tem um lado positivo, tem um lado muito positivo, que você simplesmente faz o seu trabalho e você pode passar a ser, graças a Deus, um excêntrico da arte. É porque você não está indo para esse lugar absolutamente comum da cinematografia do banal. Eu acho que você deve estar no meio de uma encruzilhada muito estranha porque reconhece toda a bobagem que é esse Oscar. Ao mesmo tempo, você sabe que tem um país, agora você está sendo o Ayrton Senna. Você vai ser o Ayrton Senna do país por um dia, por um mês.
Diegues -
É, esse lugar é pesado, e eu digo o seguinte: em primeiro lugar, não tenho mais idade para ficar deslumbrado com o negócio do Oscar. Seria ridículo. É claro que, ao mesmo tempo, eu não sou maluco, eu quero ganhar o Oscar. É uma coisa importante para mim, para o meu filme e para o cinema brasileiro de um modo geral. Agora, eu me recuso a transformar o Oscar em Copa do Mundo e, muito menos, em juiz supremo do cinema brasileiro e dos meus filmes. Não se faz filme para ganhar prêmio, prêmio é um acidente na vida de um artista.

Folha - Ai se o Brasil pudesse entender isso, não é?
Diegues -
E isso é fundamental que se entenda, o que não significa que você vai virar as costas para o Oscar, porque o Oscar é uma exposição extraordinária, é um bilhão de pessoas no mundo todo vendo aquela festa provinciana que a gente vê todo ano. Um bilhão de pessoas no mundo todo. E um brasileiro ganhando um Oscar faz com que o cinema brasileiro seja mais bem visto no resto do mundo. Agora, daí a transformar isso numa comoção nacional. Se depender de mim não vai ser.

Folha - No entanto, a imprensa e a sociedade, que é nova-rica, não entende isso. O Brasil, o público, o novo-riquismo, a ascensão, essa emergência brasileira afetam de alguma maneira a sua produção cinematográfica?
Diegues -
De jeito nenhum. Graças a Deus meus filmes sempre fizeram sucesso de público, uns mais, outros menos. Uns até nem foram sucesso de público.O que também não tem a menor importância. Eu quero que os outros se divirtam, riam, chorem, compreendam o que eu estou dizendo. Eu não faço filme nem para a história do cinema nem para a bilheteria, eu faço filme para a vida.

Folha - Mas algum pacto com a posteridade a gente tem sim, pelo amor de Deus.
Diegues -
A gente tem um pacto não é com a posteridade, é com a eternidade. A gente quer viver para sempre. A gente faz filme para ser amado. Agora, o amor compreende a existência do outro, se não tiver o outro não existe amor. Eu insisto: condenar um cineasta, ou um diretor de teatro, ou um cantor, ou um pintor, ou um poeta a fazer permanentemente sucesso de público...

Folha - E receber prêmios.
Diegues -
Prêmio é igual a dinheiro. Dinheiro é uma coisa ótima. Com dinheiro você faz o que você quiser, você faz os filmes, você sustenta sua família. O dinheiro te dá serenidade, dignidade. Agora, se você usar mal o dinheiro, ele corrompe. É a mesma coisa do prêmio. O prêmio é um beijo na boca, é uma prova de que você é amado, mas se você usar mal o prêmio, ele te corrompe.

Folha - Como é que foi esse mês que você passou em Los Angeles?
Diegues -
Foi muito interessante. A gente foi para Los Angeles para começar a preparar a campanha de lançamento comercial do filme, que vai entrar nos Estados Unidos em junho, e, ao mesmo tempo, tentar a nominação para o Oscar. Nós não tínhamos muito dinheiro. A nossa campanha foi sustentada pela Warner Brothers, que é detentora dos direitos do filme nos Estados Unidos, e também pelo Ministério da Cultura, que nos ajudou também. Nós gastamos o dinheiro, o pouco dinheiro que tínhamos, em exibições e anúncios nos jornais. A sessão para a Academia foi aplaudida no final. Porém é impossível prever se o filme vai ser nominado ou não.

Folha - A gente pode dizer com toda a certeza do mundo que você acabou de passar um mês dentro de um alto-forno de uma usina que produz uma briga entre egos. Nenhum dia você ficou deprimido? Ansioso?
Diegues -
Eu cada vez fico mais aflito quando tenho um filme para estrear. Com a idade eu pensei que isso fosse melhorar, mas...

Folha - Piora.
Diegues -
Só piora. Mas sabe por que piora? Porque quando você é jovem....

Folha - É irresponsável.
Diegues -
Você é Deus quando você é jovem. Você acha que os outros são uns babacas, uns otários. Se não gostaram do que você fez é porque são uns imbecis. Conforme você vai ficando mais velho vai aumentando a porcentagem de hipótese de o outro estar certo, e é terrível.

Folha - Um dia você acordou de manhã e falou: "Vou refilmar "Orfeu"'? Como é que você prioriza um projeto antes do outro?
Diegues -
As idéias de um filme eu não sei direito como elas nascem, elas podem nascer de maneiras muito diferentes. No caso do "Orfeu", por exemplo, ela nasceu muitos anos atrás, quando eu tinha 15 para 16 anos e meu pai me levou para ver a estréia da peça no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Isso era em 1956. Eu nem sabia que ia ser cineasta, que ia fazer filmes. Não sabia que gostava de cinema e foi um impacto muito grande na minha vida, por diversas razões, sobretudo pela novidade de uma espécie de manifestação cultural que eu não conhecia, ou que eu não sabia que podia ter aquela nobreza, que podia ter aquela dignidade. Três anos depois eu vi o filme do Camus, fiquei muito decepcionado porque não tinha nada a ver nem com a peça nem com a realidade brasileira. Procurei fazer um filme de hoje, fiel ao espírito da peça, mas evidentemente atualizando e trazendo para o dia de hoje.

Folha - Se Glauber estivesse vivo hoje?
Diegues -
Olha, o Glauber era o melhor de todos nós, não é? Não só porque ele era um grande cineasta, mas também porque foi o mais generoso pensador que o Brasil teve nesse período. O Glauber era uma pessoa que me dá saudade física. Agora é totalmente impossível prever onde o Glauber estaria hoje, porque a principal característica do Glauber era ser o inimigo mais radical do lugar-comum. Pensava o Brasil e fazia o Brasil pensar. Certamente não estaria no coro dos contentes. Isso eu te garanto que não estaria. Ele estava ali para não deixar ninguém ficar satisfeito com o lugar-comum

Folha - Uma espécie de mistura de Brecht com Artaud, que rodava a baiana.
Diegues -
(Risos) É, pode ser.


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