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ENTREVISTA
"Prêmio é um acidente na vida de um artista"
especial para a Folha
Folha - Muito pouco, hoje
em dia, se fala da obra das pessoas. A identidade do autor sumiu dentro da obra. Tudo é relacionado a uma indústria. Isso incomoda você?
Diegues - Muito. Você tocou
num assunto que me incomoda
há anos. O cinema ser tratado como produto que está sempre ligado a dinheiro é uma coisa que me
incomoda muitíssimo, infelizmente. Isso, às vezes, é até estimulado pelos próprios artistas.
Folha - Estimulado em que
sentido?
Diegues - Se, no Brasil, nós tivéssemos mais produtores, quem
sabe os produtores ocupariam esse espaço e os artistas poderiam
falar mais de arte e menos de dinheiro, produção, custo, renda.
Isso começou, na verdade, nos
anos 30, quando Irving Talberg,
que era um extraordinário produtor da Metro, um gênio, inventou
essa coisa de fazer a promoção
dos filmes pelo custo deles, para
impressionar os investidores de
Wall Street. E, por acaso, isso impressionou o público e ficou eternamente ligado à idéia de promoção do filme, à idéia do seu custo,
do seu resultado. Nunca ninguém
pergunta, por exemplo, a João
Ubaldo Ribeiro quanto custou o
livro dele, ou ao Caetano Veloso
quanto custou o disco dele.
Folha - Mas o cinema sempre
está relacionado a um custo.
Diegues - É uma maldição em
cima do cinema e que eu acho deplorável. Até hoje em dia, você
não fala nem mais filme, você fala
produto. Isso é um absurdo. Artista nenhum vai trabalhar, vai
dar o que ele pode dar, sob essa
pressão.
Folha - Conheço muito diretor
que pega metade da verba que
foi concedida para um espetáculo e bota no apartamento e o
resto, os outros 50%, são investidos no espetáculo. Mas tem
milhões de pessoas nessa "trade", nessa indústria, vamos dizer, que não são artistas, e eu
acho que são por eles que a
gente, que a imprensa, está fazendo esse escândalo todo.
Diegues - E o mais interessante
é o seguinte: a imprensa brasileira
passou anos dizendo que o cinema brasileiro tinha de ir para o
mercado. Quando foi, reclama.
Folha - Agora que está no mercado!
Diegues - E, quando a gente vai,
eles reclamam.
Folha - É.
Diegues - Está certo? Bota a polícia em cima, apura e prende.
Quando houve o escândalo do
banco Nacional, ou do banco
Econômico, ninguém fechou o
sistema bancário brasileiro, fecharam os bancos que estavam
errados, não é verdade? Então é
isso o que tem de ser feito.
Folha - Essa é uma analogia
perfeita, realmente.
Diegues - É lógico, ninguém fechou o sistema bancário. Ninguém foi lá e fechou todos os bancos porque o banco Nacional fez
falcatrua, ou o banco Econômico
estava errado. Isso não aconteceu.
Então é a mesma coisa, não é? Eu
não sou paranóico, não acho que
a imprensa brasileira persiga o cinema brasileiro. Acho que existe a
revista "Veja", que é uma revista
criminosa, que faz artigos que terminam, como fez recentemente,
dizendo que o Brasil nunca terá
uma cultura própria. Então eu
acho que é uma perseguição
idiossincrática, cujos motivos eu
nem sei quais são, mas é evidentemente idiossincrática, injusta e
desonesta. Agora, a imprensa
brasileira, em geral, pelo contrário, até dá bastante espaço ao cinema brasileiro.
Folha - Mas dá mais espaço
ainda a um escândalo....
Diegues - Mas ela gosta de escândalo, gosta das coisas que não
dão certo. É isso.
Folha - E a que você atribui isso?
Diegues - Eu acho que com relação ao cinema no Brasil existem
duas razões, e pode ser que eu esteja errado: uma de caráter específico-cinematográfico, e outra de
caráter cultural-brasileiro.
A específico-cinematográfico é
que existe uma velha tradição de
que o Brasil não pode fazer cinema. É uma espécie de autocomiseração, de incompetência, como
se o cinema fosse uma tecnologia
muito avançada para nós, pobres
selvagens. Eu me lembro que,
quando era adolescente, não pensava em ser cineasta, mas adorava
cinema. Lembro-me de ler no jornal que a língua portuguesa não
dava para cinema. Estava escrito
nos jornais nos anos 50, nos anos
60.
Folha - Bom, mas aí houve o cinema novo e mudou tudo isso.
Diegues - Mas o cinema novo
não chegou a mudar tudo isso
porque aí vem outro negócio, eles
ganham prêmio fora do Brasil,
mas os filmes não dão dinheiro,
não dão público, o que, aliás, também não é verdade. O cinema novo só deu certo como movimento
porque todos nós, além dos prêmios e do sucesso artístico que
nossos filmes tiveram, fizemos
pelo menos um filme que foi sucesso de público. Mas, voltando
àquela coisa anterior, além do
motivo puramente senatorial
existe também o motivo cultural.
É aquela coisa. Aí veio aquela tradicional e clássica citação do Antônio Carlos Jobim que sucesso
no Brasil é uma ofensa pessoal.
Folha - Mas não é na música.
Diegues - De certo modo é, porque quando você começa a se destacar muito na música imediatamente gera um certo desconforto
no crítico musical. Eu acho que
existe uma coisa, eu sou totalmente português, eu adoro que o
Brasil seja português...
Folha - E eu detesto.
Diegues - Eu não tenho nenhum problema quanto a isso, eu
adoro. É porque a gente não desenvolve as qualidades portuguesas, a gente fica desenvolvendo os
defeitos....o isolamento, o derrotismo, o sentimento de impotência, que acabam virando pessimismo. O sentimento de autocrítica, mas, quando a autocrítica vira autoflagelação, detesto isso.
Folha - Essa pergunta é uma
pequena tese minha. É o seguinte: vamos tocar num ponto
muito específico, e acho que
"Orfeu" é um ponto muito específico dentro disso. Eu acho um
absurdo que o mundo todo tenha sido levado por uma febre
naturalista, realista. Eu acho
que culpa disso, de uma certa
maneira, é o consumo desvairado de filmes de ação, cada vez
mais preocupados em fazer
uma equação possível entre o
efeito especial e o desempenho
do ator naturalista dentro dele,
como se não existisse uma outra
dimensão que cuidasse desses
fenômenos que a gente chama
de efeitos especiais. É cobrada
uma postura como diretor de
ator. Nos filmes, ouço muito isso. Com muita frequência, cada
ator está dirigido de uma forma
diferente, como se não houvesse unificação. Eu vejo nisso uma
tremenda virtude na medida em
que você é um diretor de símbolos. Você faz aquele cinema que
eu, por exemplo, a minha geração, considera como sendo o cinema verdadeiro. Você não está
tentando equacionar cinema
com o cotidiano das ruas de
qualquer cidade do mundo. Como é que você responde a esse
tipo de crítica?
Diegues - Olha, eu acho isso um
absurdo. Desde o meu primeiro
filme eu tento desenvolver a idéia
de que as pessoas não são iguais
no mundo, e que essa idéia do indivíduo é indissociável da idéia de
mundo, ou seja, cada indivíduo
está no mundo para ser ele e não
para ser o outro. Então os meus
atores são dirigidos conforme cada um é.
Folha - Tem um lado positivo,
tem um lado muito positivo,
que você simplesmente faz o
seu trabalho e você pode passar
a ser, graças a Deus, um excêntrico da arte. É porque você não
está indo para esse lugar absolutamente comum da cinematografia do banal. Eu acho que você deve estar no meio de uma
encruzilhada muito estranha
porque reconhece toda a bobagem que é esse Oscar. Ao mesmo tempo, você sabe que tem
um país, agora você está sendo
o Ayrton Senna. Você vai ser o
Ayrton Senna do país por um
dia, por um mês.
Diegues - É, esse lugar é pesado,
e eu digo o seguinte: em primeiro
lugar, não tenho mais idade para
ficar deslumbrado com o negócio
do Oscar. Seria ridículo. É claro
que, ao mesmo tempo, eu não sou
maluco, eu quero ganhar o Oscar.
É uma coisa importante para
mim, para o meu filme e para o cinema brasileiro de um modo geral. Agora, eu me recuso a transformar o Oscar em Copa do Mundo e, muito menos, em juiz supremo do cinema brasileiro e dos
meus filmes. Não se faz filme para
ganhar prêmio, prêmio é um acidente na vida de um artista.
Folha - Ai se o Brasil pudesse
entender isso, não é?
Diegues - E isso é fundamental
que se entenda, o que não significa que você vai virar as costas para
o Oscar, porque o Oscar é uma exposição extraordinária, é um bilhão de pessoas no mundo todo
vendo aquela festa provinciana
que a gente vê todo ano. Um bilhão de pessoas no mundo todo. E
um brasileiro ganhando um Oscar faz com que o cinema brasileiro seja mais bem visto no resto do
mundo. Agora, daí a transformar
isso numa comoção nacional. Se
depender de mim não vai ser.
Folha - No entanto, a imprensa
e a sociedade, que é nova-rica,
não entende isso. O Brasil, o público, o novo-riquismo, a ascensão, essa emergência brasileira
afetam de alguma maneira a
sua produção cinematográfica?
Diegues - De jeito nenhum.
Graças a Deus meus filmes sempre fizeram sucesso de público,
uns mais, outros menos. Uns até
nem foram sucesso de público.O
que também não tem a menor
importância. Eu quero que os outros se divirtam, riam, chorem,
compreendam o que eu estou dizendo. Eu não faço filme nem para a história do cinema nem para
a bilheteria, eu faço filme para a
vida.
Folha - Mas algum pacto com
a posteridade a gente tem sim,
pelo amor de Deus.
Diegues - A gente tem um pacto
não é com a posteridade, é com a
eternidade. A gente quer viver para sempre. A gente faz filme para
ser amado. Agora, o amor compreende a existência do outro, se
não tiver o outro não existe amor.
Eu insisto: condenar um cineasta,
ou um diretor de teatro, ou um
cantor, ou um pintor, ou um poeta a fazer permanentemente sucesso de público...
Folha - E receber prêmios.
Diegues - Prêmio é igual a dinheiro. Dinheiro é uma coisa ótima. Com dinheiro você faz o que
você quiser, você faz os filmes, você sustenta sua família. O dinheiro te dá serenidade, dignidade.
Agora, se você usar mal o dinheiro, ele corrompe. É a mesma coisa
do prêmio. O prêmio é um beijo
na boca, é uma prova de que você
é amado, mas se você usar mal o
prêmio, ele te corrompe.
Folha - Como é que foi esse
mês que você passou em Los
Angeles?
Diegues - Foi muito interessante. A gente foi para Los Angeles
para começar a preparar a campanha de lançamento comercial
do filme, que vai entrar nos Estados Unidos em junho, e, ao mesmo tempo, tentar a nominação
para o Oscar. Nós não tínhamos
muito dinheiro. A nossa campanha foi sustentada pela Warner
Brothers, que é detentora dos direitos do filme nos Estados Unidos, e também pelo Ministério da
Cultura, que nos ajudou também.
Nós gastamos o dinheiro, o pouco
dinheiro que tínhamos, em exibições e anúncios nos jornais. A sessão para a Academia foi aplaudida no final. Porém é impossível
prever se o filme vai ser nominado ou não.
Folha - A gente pode dizer
com toda a certeza do mundo
que você acabou de passar um
mês dentro de um alto-forno de
uma usina que produz uma briga entre egos. Nenhum dia você
ficou deprimido? Ansioso?
Diegues - Eu cada vez fico mais
aflito quando tenho um filme para estrear. Com a idade eu pensei
que isso fosse melhorar, mas...
Folha - Piora.
Diegues - Só piora. Mas sabe
por que piora? Porque quando
você é jovem....
Folha - É irresponsável.
Diegues - Você é Deus quando
você é jovem. Você acha que os
outros são uns babacas, uns otários. Se não gostaram do que você
fez é porque são uns imbecis.
Conforme você vai ficando mais
velho vai aumentando a porcentagem de hipótese de o outro estar
certo, e é terrível.
Folha - Um dia você acordou
de manhã e falou: "Vou refilmar
"Orfeu"'? Como é que você prioriza um projeto antes do outro?
Diegues - As idéias de um filme
eu não sei direito como elas nascem, elas podem nascer de maneiras muito diferentes. No caso
do "Orfeu", por exemplo, ela nasceu muitos anos atrás, quando eu
tinha 15 para 16 anos e meu pai
me levou para ver a estréia da peça no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro. Isso era em 1956. Eu nem
sabia que ia ser cineasta, que ia fazer filmes. Não sabia que gostava
de cinema e foi um impacto muito grande na minha vida, por diversas razões, sobretudo pela novidade de uma espécie de manifestação cultural que eu não conhecia, ou que eu não sabia que
podia ter aquela nobreza, que podia ter aquela dignidade. Três
anos depois eu vi o filme do Camus, fiquei muito decepcionado
porque não tinha nada a ver nem
com a peça nem com a realidade
brasileira. Procurei fazer um filme
de hoje, fiel ao espírito da peça,
mas evidentemente atualizando e
trazendo para o dia de hoje.
Folha - Se Glauber estivesse
vivo hoje?
Diegues - Olha, o Glauber era o
melhor de todos nós, não é? Não
só porque ele era um grande cineasta, mas também porque foi o
mais generoso pensador que o
Brasil teve nesse período. O Glauber era uma pessoa que me dá
saudade física. Agora é totalmente impossível prever onde o Glauber estaria hoje, porque a principal característica do Glauber era
ser o inimigo mais radical do lugar-comum. Pensava o Brasil e fazia o Brasil pensar. Certamente
não estaria no coro dos contentes.
Isso eu te garanto que não estaria.
Ele estava ali para não deixar ninguém ficar satisfeito com o lugar-comum
Folha - Uma espécie de mistura de Brecht com Artaud, que
rodava a baiana.
Diegues - (Risos) É, pode ser.
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