São Paulo, terça-feira, 15 de fevereiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARNALDO JABOR
Mr. Daley não foi à festa do Oscar brasileiro

Mr. William Daley, secretário do Comércio americano, chegou ontem com uma comitiva barra-pesada de negociadores para acabar com nossa Lei de Patentes, para impedir novas formas de privatização pulverizada em ações (querem o controle total nos leilões...), para se meter na guerra dos remédios, das teles e da indústria elétrica. "O Brasil anda muito folgadinho, querendo financiar só empresários brasileiros, pensando em limitar bancos estrangeiros, em multar laboratórios..." -declaram eles. Terão nossos tucanos o "peito" de se opor a essa equipe de guerreiros? (Tocqueville disse que "guerra e comércio são a mesma coisa para os americanos".) A maneira frouxa como este governo entendeu a globalização, abrindo as pernas além da conta, num mix de ingenuidade e covardia, me leva a duvidar. Brasileiro tem medo de gringo e, se deixar, beija a mão.
Eu sou um pobre homem do Cinema Novo. No entanto, minhas pequenas experiências comerciais com Hollywood me deram a visão em miniatura do que está acontecendo em setores mais importantes da economia. Quando fui vender meus filmes nos EUA, vi que a pior forma de desamparo é negociar com americanos. Eles não nos dão a esmola de um "jeitinho", de uma escassa cordialidade. Diante do negociante americano, sinto-me abstrato. Ele é real; você é imaginário. Você tem a vaga esperança de uma cordialidade, mas não vem nem um cafezinho. William Daley já chegou dizendo que o aço brasileiro vai continuar taxado e fim de papo. É a técnica brutal do fato consumado. Eles não te dão nada e você, se bobear, ainda sai com uma gratidão humilhante, por ter sido mal pago para entrar no baile deles.
Talvez a grande invenção americana seja o curto prazo. Não existe o raciocínio flexível no comércio com os emergentes. Não existe a idéia de "reflorestar-nos", de nos fecundar, de nos ajudar no desenvolvimento a longo prazo, nem que seja para terem bons fregueses no futuro.
Falo essas obviedades nacionalistas, porque vi a festa do Oscar brasileiro. Um desfile emocionante de uma grande fome de existir, um cinema talentoso, louco para respirar e cercado de impossibilidades -tudo no meio de cenários absurdamente pobres, de uma transmissão pela TVE do Rio inacreditável. Nem o som eles puxaram da "mesa". (Será que ninguém vai ser despedido daquele cabide de empregos com 12 mil funcionários inúteis?) Artistas, cineastas, produtores, todos passavam um clima de esperança com amargura. Parecia uma dessas festas clandestinas no subterrâneo de um país ocupado. O slogan oficial era repetido com uma sombra de tristeza e dúvida: "Ahhh... agora o nosso cinema está renascendo..." Faltava apenas um convidado na festa: o mercado. Isso me dá um calafrio, pois vejo que os filmes brasileiros estão sendo produzidos de novo, graças a incentivos fiscais, mas são jogados no gueto dos cinemas de arte, ou tirados de cartaz em plena carreira bem-sucedida, porque não temos uma política de distribuição para eles. É como produzir pães sem padaria, televisão sem receptores. Nos anos 70, quando tínhamos a lei de proteção ao mercado interno, chegamos a fazer 12 milhões de espectadores em filmes como "D.Flor", ou seja, tudo que Mr. Daley ou Mr. Valenti não querem...
Outro dia, li uma entrevista do Jacques Le Goff (um dos maiores historiadores do mundo), na qual ele diz: "Não sou protecionista, com exceção do âmbito do cinema. O cinema é um dos pontos fortes da civilização européia e é preciso defender a cota de tela do cinema europeu". O cinema americano acabou com o cinema alemão, o italiano, o espanhol, se bem que dão uns premiozinhos de consolação de vez em quando para o Benigni e para o Almodóvar.
Está claro que não dá mais para termos uma política de "substituição de importações" getulista, hoje em dia, mas não dá também para o governo achar que a tarefa está pronta com a Lei do Audiovisual".
Falta o resto; e o "resto" é que é difícil. Há soluções possíveis. Na Espanha, a cada três filmes americanos dublados, eles são obrigados a co-produzir um filme espanhol. Temos de arranjar novos métodos. Não dá pra ver todos aqueles filmes ótimos concorrendo a prêmios e sem telas. Globalização da economia vira um lero-lero se não houver mão dupla. Sintam o drama: há uma lei de cinema no Brasil que permite que as companhias estrangeiras de filmes apliquem parte de seu imposto de renda na co-produção e distribuição de filmes brasileiros. Sabe o que acontece? Os americanos preferem perder o favor fiscal (cerca de 50 milhões de reais por ano), a aplicar dinheiro (gratuito) em filmes brasileiros. Não aplicam para não estimular nosso crescimento. "Globalization my ass.." (Globalização uma porra...) -como eles dizem.
"Ahhh... seria tão bom para nós uma cooperação cultural bilateral...", pensam os babacas neoliberais. Americano não acredita em papo de fortalecer emergente; vejam nossas laranjas, sapatos e aço. O cinema para eles sempre foi uma vanguarda militar para vender mercadorias. Os personagens principais de seus filmes são os objetos, são os produtos de tecnologia de ponta. Já foram os automóveis, os jeans, hoje são os computadores e seus painéis mágicos. O enredo é apenas um pretexto para vender produtos. Chegou a hora de um neonacionalismo inteligente no cinema e no resto. Chegou a hora da segunda etapa da Lei do Audiovisual: distribuição! distribuição!... Vamos proteger a exibição de nossos filmes, pelo menos em nosso mercado. Abaixo o velho imperialismo! Do contrário, continuaremos a viver só de ilusões, de tristes festas mambembes com vitoriosos deprimidos, como quer Mr. Daley, que está aí e não nos deixa mentir...


Texto Anterior: "Ripley" esquenta competição
Próximo Texto: Um grande autor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.