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São Paulo, sábado, 15 de fevereiro de 2003

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"UM MÍSTICO BRASILEIRO"

Obra traça panorama descritivo do conflito

Cunninghame Graham vê Canudos com olhos europeus

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A saga de Canudos é um dos episódios sociais mais instigantes da história da América do Sul. Seu imenso apelo é comprovado pelo volume de obras literárias de grande valor que ela instigou; a mais relevante das quais, "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, teve o centenário de lançamento comemorado em 2002.
Um dos subprodutos da comemoração desse aniversário tem sido o lançamento ou relançamento de outros livros baseados no drama de Antônio Conselheiro. Entre eles, "O Rei dos Jagunços", de Manoel Benício, repórter que cobriu a guerra no interior da Bahia, e "Um Místico Brasileiro", de Robert B. Cunninghame Graham, publicado por Unesp/Sá Editora.
Cunninghame Graham, inglês mestiço que passou parte da vida na América do Sul (sua mãe era venezuelana) no final do século 19 e início do 20, escreveu muito sobre o subcontinente, inclusive este relato sobre o embate entre o Exército da recém-criada república brasileira e os caboclos liderados por Antônio Conselheiro.
Ao contrário de Euclydes da Cunha e Manoel Benício, Cunninghame Graham nunca esteve no local dos acontecimentos que descreve. Aparentemente, ele começou a redigir seu trabalho em 1914, quando tomou conhecimento dos incidentes, que muito o impressionaram, e passou a pesquisar o assunto. "Os Sertões" foi sua principal referência, mas outras fontes primárias lhe serviram de subsídio.
A crítica literária internacional coloca "Um Místico Brasileiro" entre a tríade das grandes obras sobre Canudos (ao lado de "Os Sertões" e de "Guerra do Fim do Mundo", de Mario Vargas Llosa). Llosa fez um romance histórico, Euclydes, um tratado antropológico. Já Cunninghame Graham produziu um livro descritivo, didático, com grande força narrativa, que em alguns momentos parece aproximar-se da ficção.
Sua perspectiva, embora temperada por sua condição crioula, é a do europeu "civilizado", assim como o público-alvo do trabalho eram os integrantes da elite cultural dos centros do poder geopolítico mundial da época.
O exotismo do ambiente sertanejo e dos fanáticos religiosos é o chamariz, o eixo em torno do qual gira a história contada por Cunninghame Graham, com verve e inteligência.
Esta é a primeira edição em português deste clássico da literatura de viajantes ingleses. É surpreendente que tenha demorado tanto a acontecer.
É importantíssimo que ocorra agora, quando o essencial "Os Sertões" recebe tanta atenção, exatamente por dar acesso a uma leitura alternativa dos episódios que tanto marcaram os anos iniciais do regime republicano brasileiro.
Ao lado do volume da série "Folha Explica" sobre "Os Sertões" (de Roberto Ventura, talvez o mais profundo conhecedor da obra de Euclydes da Cunha), da excelente edição da Ateliê Editorial de "Os Sertões" (com prefácio, cronologia, notas e índices de Leopoldo M. Bernucci) e dos magníficos Cadernos de Literatura e de Fotografia Brasileira que o Instituto Moreira Salles produziu sobre Canudos (com a participação também de Ventura), "Um Místico Brasileiro" dá aos brasileiros a oportunidade de entender melhor esse fenômeno fundamental de sua história.
Menos importante, mas muito original e criativa, é também a novela "Veredicto em Canudos", do húngaro Sándor Márai, que a Companhia das Letras editou em 2001.
Baseado apenas na leitura de Euclydes, essa ficção fantástica é outra demonstração do fascínio que Canudos exerce sobre a imaginação humana.


Carlos Eduardo Lins da Silva, 49, é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor Econômico"


Um Místico Brasileiro
    Autor: Robert B. Cunninghame Graham Editora: Unesp/Sá Editora Quanto: R$ 26 (224 págs.)



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