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WALTER SALLES
Pelos quatro cantos do continente
Três da manhã do último
domingo. Rio Nanay,
afluente do Amazonas, no Peru.
Termina o filme que começamos
a rodar no final de setembro, na
Argentina. Algumas pessoas se jogam dentro d'água para comemorar. Depois voltam nadando
lentamente, à contracorrente, em
direção ao barco que as traria de
volta para Iquitos.
"Hasta aqui llegamos", dizíamos, a cada etapa do percurso.
Buenos Aires, Miramar, San Bernardo, Villa La Angostura, Mendoza, Cuyin Manzano, Lago
Frias, na Argentina. Temuco,
Lautaro, Freire, Valparaíso, Chuquicamata, deserto de Atacama,
no Chile. Cuzco, Machu Picchu,
Ollantaytambo, Lima, Iquitos,
Santa Maria, no Peru. Mais de
20.000 km percorridos por terra,
além de 42 trajetos de avião cumpridos durante a filmagem e a
preparação.
Nessa viagem iniciática através
de um continente, atingir o final
nos pareceu muitas vezes utópico.
Por isso, talvez, a gravidade que
nos invade enquanto nadamos,
nesse último percurso que fazemos em conjunto.
Não somos os mesmos que partimos. Algo mudou, se transformou dentro de nós. Viemos de 12
países diferentes. Fomos, muitas
vezes, uma babel fílmica. Depois,
aprendemos a conviver uns com
os outros, a ser mais tolerantes, a
aceitar nossas diferenças.
Último encontro no barco. Há
rostos tão diferentes nessa comunidade que se separa. Mas há
também instantes de sincronismo, um território comum, no riso
e na nostalgia. Mais do que antes,
tenho a impressão de que, contra
as indicações mais pessimistas,
algo se amalgamou aqui, deu liga. Como se a frase dita por Ernesto Guevara aqui na Amazônia, no dia em que ele fez 24 anos,
se tornasse subitamente mais próxima: um único povo, um único
continente, separado por fronteiras ilusórias.
Me perguntam o que mais me
impressionou durante esse percurso. Certamente o desejo simultâneo de desvendamento e de re-descobrimento, essa sede de América Latina que esses dois jovens,
Ernesto Guevara e Alberto Granado, tinham, e que fomos revivendo e sentindo à medida que
avançávamos.
De tudo que vi durante todos esses meses, aquilo que calou mais
fundo está ligado à memória incaica. Machu Picchu, sim, mas sobretudo a idéia de uma cultura
que se estendia do Equador até o
que é hoje Mendoza, na Argentina. Um imenso território dividido
em quatro espaços simbólicos:
quatro irmãos fundadores, quatro pontos cardinais, o império
dos quatro cantos.
Uma civilização que só se consolidou em 1430, e que durou menos de cem anos. Um curto espaço
de tempo. Por isso, talvez, o legado dos Incas seja tão impressionante. Tinham um conhecimento
aprofundado nos campos da astronomia, medicina, agricultura
e arquitetura. E as esculturas de
Machu Picchu provam que os Incas também conheciam a arte
não figurativa -quase 400 anos
à frente de seu tempo.
Difícil não se perguntar o que
teria acontecido com o que é hoje
a América Latina sem Pizzarro e
a invasão espanhola. Talvez um
continente verdadeiramente unido, uma antecipação daquilo que
Bolivar, Marti e o próprio Ernesto
Guevara desejavam. Uma perspectiva que não deve ser romantizada: a força militar, a centralização política e a econômica foram decisivas para a cristalização
do império Inca. Doze milhões de
pessoas trabalhavam para esse
império, e recursos eram extraídos dos territórios ocupados para
alimentar uma minoria aninhada em Cuzco.
Nunca deixou de haver levantes
em alguma parte desse território.
São esses grupos de outras etnias
que se aliaram aos espanhóis e fizeram com que a civilização incaica, ainda não sedimentada,
caísse tão cedo.
Assim foi, talvez. Jamais saberemos ao certo. Os Incas não conheciam a escrita. Por isso, a sua história foi contada em grande parte
do ponto de vista dos conquistadores, e muito se perdeu.
Penso nisso no vôo que me traz
de volta ao Brasil. Na importância de narrar as nossas próprias
histórias. De construir uma memória que seja nossa, o nosso reflexo no espelho. Hoje, em um
momento de redefinição política
nos quatro cantos deste continente, mais do que antes. "Ojalá, cabrón", diriam os meus mais céticos companheiros de viagem.
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