São Paulo, terça-feira, 15 de fevereiro de 2005

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BERNARDO CARVALHO

Auto-ajuda social

Livros como "Collapse" (colapso, da ed. Viking), do biólogo e professor de geografia da Universidade da Califórnia (UCLA) Jared Diamond, não são novidade. Ainda mais no mercado editorial americano. A novidade é que um livro desses seja matéria de mais de três páginas de uma revista como a "New Yorker". Ou que, influenciado por essa reportagem, eu tenha encomendado o livro na internet -o que, em outros tempos, não teria me passado pela cabeça.
Tentei não me deixar abater pela capa: o título, escrito em letras douradas garrafais, em alto relevo, sobre uma foto de pirâmides maias (uma das sociedades que "escolheu fracassar"), de repente me fez suspeitar do que tinha nas mãos. Eu queria saber qual a alternativa dada por um especialista (Diamond ganhou o Pulitzer por seu livro anterior, o best-seller "Armas, Germes e Aço", publicado pela Record) ao crescimento não-sustentável da economia mundial. Agi como o típico leitor de livros de auto-ajuda atrás de receitas instantâneas e de fórmulas de bem-estar. A única diferença é que as minhas angústias não diziam respeito a problemas pessoais de curto prazo, mas a uma situação social globalizada, à sobrevivência da espécie e do planeta. A resposta veio à altura -e a capa já era um sinal.
"Collapse" está recheado de informações e fatos históricos, alguns especialmente interessantes, como a saga das colônias de vikings noruegueses na Groenlândia, o desaparecimento dos habitantes da ilha de Páscoa ou a organização social explosiva que precedeu o genocídio em Ruanda -tragédia que teria menos a ver, segundo o autor, com um conflito racial do que com uma crise malthusiana, ou seja, muita gente para pouca comida.
Alguém já definiu os livros de auto-ajuda como aqueles que dizem o lugar-comum como se estivessem descobrindo a pólvora. Como o lugar-comum já está na cabeça do leitor desde sempre, ele se sente aliviado ao "descobrir" que a "solução impensada" para os seus problemas não só não o contraria mas corresponde ao que já pensava.
Em "Collapse", o relato sobre civilizações antigas ou exóticas e sobre fatos históricos desconhecidos da maioria dos leitores serve para encobrir a obviedade das conclusões. Diamond faz dos casos históricos de desaparecimento de sociedades inteiras (os maias, os habitantes da ilha de Páscoa etc.) um alerta para o presente. E sua receita de sobrevivência é apelar para a moderação.
Diamond se define como um "otimista precavido". Recusa o tempo inteiro a pecha do "determinismo ecológico". Não deixa de levar em conta fatores históricos, geográficos, sociais e econômicos nas relações que as sociedades estabelecem com o meio ambiente e, por conseqüência, nas suas chances de sobrevivência. Mas, para ele, tudo depende afinal de escolhas e decisões. As sociedades poderiam escolher se vão sobreviver ou não, dependendo de sua consciência ou de sua cegueira. "Collapse", no final das contas, é um livro de psicologia social.
Esse ponto de vista, simpático e pragmático na medida do possível (Diamond aconselha, exorta os leitores a abrirem mão de seu consumismo, indica caminhos para iniciativas individuais em bairros etc.), acredita que o ser humano seja sustentável, contanto que evite a equação destruidora, prevista por Malthus, em que escassez de comida e de terras férteis se combina com alta concentração populacional. A destruição e o suicídio da espécie seriam, para o autor, aberrações de percurso a serem corrigidas por medidas governamentais (o controle de natalidade na China, por exemplo) e por mudanças do comportamento de grupos e indivíduos.
Se o homem não estiver disposto a tomar as decisões certas e a fazer concessões (Diamond está, em parte, dialogando com o governo Bush), as guerras, as doenças e a fome conseqüentes das más decisões se encarregarão de reencontrar o equilíbrio necessário. É um raciocínio peculiar, o contrário de uma perspectiva trágica, como a do alemão W.G. Sebald em seu belo "Os Anéis de Saturno", para quem o homem veio para destruir, já que a civilização humana está baseada na combustão.
O otimismo de "Collapse" se sustenta sobre uma contradição de fundo. Ao mesmo tempo em que fala de conflitos de interesse (por exemplo: para preservar suas florestas, o Japão tem que contar com o desmatamento de países em desenvolvimento, como o Brasil) e diz em alto e bom som que o crescimento econômico mundial é insustentável -"o mundo não pode suportar a China e outros países do Terceiro Mundo (...) funcionando em níveis de Primeiro Mundo. (...) Mesmo se as populações do Terceiro Mundo não existissem, seria impossível para o Primeiro Mundo sozinho manter o seu curso atual"-, acredita poder remediar a situação pelo poder da autodeterminação.
Esse raciocínio, que também permite ao autor tomar o partido de grandes indústrias que adotam medidas ambientalistas para compensar o mal da engrenagem de produção em que estão inseridas, é típico de um mundo descrente dos grandes sistemas de pensamento. O que o leitor quer ler é o que ele já sabe, o que não o contraria, a visão parcial. Nada melhor, nesse caso, do que acreditar que as soluções dependem unicamente do bom senso de suas escolhas e de boas intenções.


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