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MARCELO COELHO
Boa noite, e mais sorte da próxima vez
Está certo que as pessoas fumavam demais nos anos 50.
Mesmo assim, em "Boa Noite e
Boa Sorte", de George Clooney,
presenciamos um exagerado, obsessivo balé de isqueiros que se
acendem, de bitucas que se esmagam, de finos novelos de fumaça
brilhando na escuridão (graças à
bela fotografia em preto-e-branco
de Robert Elswit, uma das seis indicações do filme ao Oscar).
Acho que desde "O Informante", de Michael Mann, com Al Pacino e Russell Crowe, não se fumava tanto num filme de Hollywood. Coincidência ou não, os
dois filmes têm como heróis os
jornalistas da rede CBS de televisão. Num caso, o detalhe se explica: no papel do repórter Lowell
Bergman, Al Pacino desvendava
segredos infames da indústria tabagista. Trabalha com garra, mas
sofre todo tipo de pressão e termina professor de jornalismo numa
universidade.
Ameaças semelhantes, no filme
agora em cartaz, pairam sobre o
apresentador Edward R. Murrow
(David Strathairn, outro "oscarizável"), que teve a coragem de se
contrapor, em 1953, ao anticomunismo histérico do senador Joseph
McCarthy. Com uma bem-organizada campanha de delações e
com os métodos inquisitoriais de
sua comissão parlamentar sobre
"atividades antiamericanas", o
macarthismo parecia a ponto de
varrer as liberdades democráticas
do território americano.
"Boa noite e Boa Sorte" é o refrão com que Murrow terminava
seu programa semanal de comentários e entrevistas, patrocinado,
entre outros, pelos cigarros Kent.
O apresentador, como era comum
na época, fumava diante das câmeras, com os lábios espremidos e
o queixo em ponta, enquanto
submetia os entrevistados ao exame implacável de seus olhos de
navalha.
Saímos do cinema achando
Murrow o maioral, ainda mais
na charmosa, enxutíssima interpretação de David Strathairn. Filmes desse tipo fazem falta: ética e
coragem nem sempre ganham a
parada no mundo real, e é raro
que estejam associadas a virtudes
não muito aeróbicas (e em tese
mais jornalísticas) como a boa articulação verbal e o espírito de livre pensamento.
Na medida em que os EUA de
Bush se entregam a ondas de histeria semelhantes ao macarthismo, aprovando leis que limitam
seriamente as liberdades individuais, "Boa Noite e Boa Sorte"
não tem como não empolgar platéias de esquerda -ou "liberais",
no sentido americano do termo.
Num discurso logo no início do
filme, Murrow se torna o porta-voz não só dos que condenavam o
macarthismo mas de todos aqueles que, ontem como hoje, lamentam a utilização da TV como um
veículo de desinformação e entretenimento estúpido, em vez de
instrumento de esclarecimento e
busca da verdade.
Talvez seja por isso que os heróis do filme terminem fumando
tanto: é para que não pareçam
tão heróicos e politicamente corretos assim. Afinal, trata-se de
jornalistas. Merecem que os encaremos com certa desconfiança, e
nada melhor para diminuir um
pouco a identificação entre o espectador e os personagens do que
mostrá-los imersos em comportamento reprovável, como o de fumar. "Boa Noite e Boa Sorte" se
torna, então, emocionalmente
mais nuançado e complexo.
Pausa para um pigarro.
Seria muito bom se o que escrevi acima fosse verdade. O problema é que, assim que se encerrou a
projeção do filme, meu entusiasmo político-jornalístico foi arrefecendo e, quanto mais o tempo
passa, mais insatisfatório e simplista me parece o filme de Clooney.
Começo discordando do próprio comportamento de Murrow.
Se as coisas de fato ocorreram como aparece no filme, o jornalista
da CBS fez um programa mostrando os métodos e idéias de
McCarthy -até aí, tudo bem-,
mas terminou a transmissão com
um editorial veemente (ainda
que sóbria e magnificamente escrito) contra o senador republicano. Não teria sido mais correto,
do ponto de vista jornalístico, entrevistar pessoas de várias opiniões, ou organizar um debate
entre diversos senadores?
Editoriais pela TV, qualquer a
tendência que tenham, parecem-me terrivelmente perigosos; talvez
por uma questão de hábito, os códigos da linguagem escrita, a invisibilidade de quem escreve, o
baixo poder hipnótico do papel
impresso, são fatores que tendem
a proteger o público do estado de
passividade que a televisão é capaz de produzir.
Seja como for, "Boa Noite e Boa
Sorte" falha um bocado na caracterização dramática dos personagens. Para que Murrow e seus
companheiros sejam os heróis do
filme, tudo é feito de modo a nos
informar o mínimo sobre cada
um deles. Ninguém tem vida íntima, hesitações, passado, dúvidas,
gostos ou convicções sobre qualquer assunto real. Fora da tela de
TV ou do estúdio, os personagens
praticamente não existem; sintomaticamente, algumas das cenas
em que os vemos relaxando e conversando amenidades são silenciosas; nenhum deles tem muito o
que dizer, além do discurso político que o espectador terá de ouvir.
Claro, o filme não se sustentaria
sem alguns percalços para os personagens; há um jornalista que
não resiste a pressões e outros
com pequenos segredos a esconder. Mas as dificuldades desaparecem logo do horizonte, assim
como o próprio McCarthy. Terá
sido tudo tão fácil assim? Qual o
jogo político e social por trás do
surgimento e da derrota do macarthismo? Vemos pouquíssimo
do que se passa fora dos estúdios
sacrossantos da CBS.
Personagens, situação política,
discussão ética acabam tendo,
afinal, a profundidade de um
simples (ainda que acima da média) programa de TV. Em "Boa
Noite e Boa Sorte" tudo fica, sem
trocadilho, no ar. Especialmente
a fumaça, é claro.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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