São Paulo, quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

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MARCELO COELHO

Boa noite, e mais sorte da próxima vez

Está certo que as pessoas fumavam demais nos anos 50. Mesmo assim, em "Boa Noite e Boa Sorte", de George Clooney, presenciamos um exagerado, obsessivo balé de isqueiros que se acendem, de bitucas que se esmagam, de finos novelos de fumaça brilhando na escuridão (graças à bela fotografia em preto-e-branco de Robert Elswit, uma das seis indicações do filme ao Oscar).
Acho que desde "O Informante", de Michael Mann, com Al Pacino e Russell Crowe, não se fumava tanto num filme de Hollywood. Coincidência ou não, os dois filmes têm como heróis os jornalistas da rede CBS de televisão. Num caso, o detalhe se explica: no papel do repórter Lowell Bergman, Al Pacino desvendava segredos infames da indústria tabagista. Trabalha com garra, mas sofre todo tipo de pressão e termina professor de jornalismo numa universidade.
Ameaças semelhantes, no filme agora em cartaz, pairam sobre o apresentador Edward R. Murrow (David Strathairn, outro "oscarizável"), que teve a coragem de se contrapor, em 1953, ao anticomunismo histérico do senador Joseph McCarthy. Com uma bem-organizada campanha de delações e com os métodos inquisitoriais de sua comissão parlamentar sobre "atividades antiamericanas", o macarthismo parecia a ponto de varrer as liberdades democráticas do território americano.
"Boa noite e Boa Sorte" é o refrão com que Murrow terminava seu programa semanal de comentários e entrevistas, patrocinado, entre outros, pelos cigarros Kent. O apresentador, como era comum na época, fumava diante das câmeras, com os lábios espremidos e o queixo em ponta, enquanto submetia os entrevistados ao exame implacável de seus olhos de navalha.
Saímos do cinema achando Murrow o maioral, ainda mais na charmosa, enxutíssima interpretação de David Strathairn. Filmes desse tipo fazem falta: ética e coragem nem sempre ganham a parada no mundo real, e é raro que estejam associadas a virtudes não muito aeróbicas (e em tese mais jornalísticas) como a boa articulação verbal e o espírito de livre pensamento.
Na medida em que os EUA de Bush se entregam a ondas de histeria semelhantes ao macarthismo, aprovando leis que limitam seriamente as liberdades individuais, "Boa Noite e Boa Sorte" não tem como não empolgar platéias de esquerda -ou "liberais", no sentido americano do termo.
Num discurso logo no início do filme, Murrow se torna o porta-voz não só dos que condenavam o macarthismo mas de todos aqueles que, ontem como hoje, lamentam a utilização da TV como um veículo de desinformação e entretenimento estúpido, em vez de instrumento de esclarecimento e busca da verdade.
Talvez seja por isso que os heróis do filme terminem fumando tanto: é para que não pareçam tão heróicos e politicamente corretos assim. Afinal, trata-se de jornalistas. Merecem que os encaremos com certa desconfiança, e nada melhor para diminuir um pouco a identificação entre o espectador e os personagens do que mostrá-los imersos em comportamento reprovável, como o de fumar. "Boa Noite e Boa Sorte" se torna, então, emocionalmente mais nuançado e complexo.
Pausa para um pigarro.
Seria muito bom se o que escrevi acima fosse verdade. O problema é que, assim que se encerrou a projeção do filme, meu entusiasmo político-jornalístico foi arrefecendo e, quanto mais o tempo passa, mais insatisfatório e simplista me parece o filme de Clooney.
Começo discordando do próprio comportamento de Murrow. Se as coisas de fato ocorreram como aparece no filme, o jornalista da CBS fez um programa mostrando os métodos e idéias de McCarthy -até aí, tudo bem-, mas terminou a transmissão com um editorial veemente (ainda que sóbria e magnificamente escrito) contra o senador republicano. Não teria sido mais correto, do ponto de vista jornalístico, entrevistar pessoas de várias opiniões, ou organizar um debate entre diversos senadores?
Editoriais pela TV, qualquer a tendência que tenham, parecem-me terrivelmente perigosos; talvez por uma questão de hábito, os códigos da linguagem escrita, a invisibilidade de quem escreve, o baixo poder hipnótico do papel impresso, são fatores que tendem a proteger o público do estado de passividade que a televisão é capaz de produzir.
Seja como for, "Boa Noite e Boa Sorte" falha um bocado na caracterização dramática dos personagens. Para que Murrow e seus companheiros sejam os heróis do filme, tudo é feito de modo a nos informar o mínimo sobre cada um deles. Ninguém tem vida íntima, hesitações, passado, dúvidas, gostos ou convicções sobre qualquer assunto real. Fora da tela de TV ou do estúdio, os personagens praticamente não existem; sintomaticamente, algumas das cenas em que os vemos relaxando e conversando amenidades são silenciosas; nenhum deles tem muito o que dizer, além do discurso político que o espectador terá de ouvir.
Claro, o filme não se sustentaria sem alguns percalços para os personagens; há um jornalista que não resiste a pressões e outros com pequenos segredos a esconder. Mas as dificuldades desaparecem logo do horizonte, assim como o próprio McCarthy. Terá sido tudo tão fácil assim? Qual o jogo político e social por trás do surgimento e da derrota do macarthismo? Vemos pouquíssimo do que se passa fora dos estúdios sacrossantos da CBS.
Personagens, situação política, discussão ética acabam tendo, afinal, a profundidade de um simples (ainda que acima da média) programa de TV. Em "Boa Noite e Boa Sorte" tudo fica, sem trocadilho, no ar. Especialmente a fumaça, é claro.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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