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CARLOS HEITOR CONY
Cartões de hoje e de ontem
Havia uma churrascaria dando sopa, com um variado cardápio que incluía até jacaré
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NÃO VOU comentar o mais recente escândalo que estourou por aí, comprometendo
o atual governo e, de quebra, recolocando na fogueira o governo anterior. O uso e o abuso dos cartões corporativos tinham de dar naquilo que
antigamente os jornais não publicavam: "mierda". (Vai em espanhol
mesmo, para não ferir ouvidos mais
sensíveis.)
Prefiro contar um episódio antigo,
para mostrar como eram as coisas
num tempo em que deputados e senadores iam de bonde para a Câmara e o Senado. E o presidente da República, depois do almoço, ia a pé do
Palácio Guanabara para o palácio do
Catete, acompanhado de um único
secretário, que lhe levava a pasta dos
despachos.
Era prefeito do Distrito Federal o
engenheiro Hildebrando de Góis,
um técnico baiano que havia saneado o grande pântano que era a Baixada Fluminense. Ele tinha por costume, uma vez por semana, visitar as
obras que estava realizando, e os jornalistas credenciados na sala de imprensa da prefeitura o acompanhavam em excursão.
Com menos de 20 anos, eu substituía o pai que era o decano daquele
grupo de profissionais (uns 15, incluindo alguns radialistas). Fomos
dar com os costados num lugar onde
nunca tinha posto os pés, Engenho
da Rainha; uma estrada ali estava
sendo asfaltada. O programa incluía
um almoço na sede de uma associação de moradores locais, almoços
geralmente vastos e rematados por
sobremesas caseiras e discursos de
circunstância.
Acontece que, durante a noite,
morrera a mulher de um dos diretores da entidade. Mal informado, ele
promoveu o velório na própria sede
onde o almoço estava marcado. Foi
um corre-corre danado, mas, ao saber que estavam providenciando a
mudança do velório para uma funerária distante, o prefeito agradeceu o
almoço, mas disse que iria almoçar
com a sua comitiva no primeiro restaurante que encontrasse à beira da
estrada.
Por sorte, havia uma churrascaria
dando sopa, oferecendo, além das
viandas tradicionais, um variado
cardápio que incluía de jacaré a animais dos quais nunca tinha ouvido
falar. Colocamos os paletós em cima
das cadeiras; o prefeito era o único
que usava colete, um homem elegante acima de tudo. Comemos vastamente, a fome era muita. Na hora
de pagar, o secretário da Fazenda,
que estava presente, fez o rateio entre os participantes, dividindo a despesa entre todos, menos um repórter da "Gazeta de Notícias" que estava fazendo anos naquele dia e que
mereceu um "parabéns pra você"
puxado pelo próprio prefeito.
Naquele tempo não havia ainda
cartão de crédito, muito menos cartão corporativo. Despesas de emergência como aquela tinham um rito
próprio para serem processadas. A
autoridade ou o funcionário, em
exercício de um cargo público, recebiam um adiantamento proporcional à despesa, se houvesse previsão
de algum custo adicional à missão.
Levava os comprovantes para a repartição que lhe adiantara o dinheiro. Em caso de emergência mesmo,
como a do almoço no Engenho da
Rainha, cada qual levava o seu comprovante e em dois ou três dias acertava suas contas com o Estado ou
com a prefeitura.
Afinal, a regra não valia apenas para os órgãos do governo. As empresas usavam o mesmo processo, pagando diárias a seus funcionários
que se deslocavam em serviço e teriam de enfrentar despesas extras e
emergenciais. Ou reembolsando-os,
mas sempre de acordo com os comprovantes. Evidente que havia uma
ou outra vigarice, gente que gastava
30 cruzeiros num deslocamento de
táxi, mas apresentava um recibo de
50. Era um problema de consciência
funcional.
O escândalo dos cartões corporativos, que agora estourou, tornou-se
possível pelo número exagerado de
usuários e pelo conceito elástico de
"emergência" que cada qual adotou
por conta própria. De qualquer forma, uma despesa de R$ 4,20 não podia ser prevista e dificilmente constituiria uma emergência funcional.
Por essas e outras, acho que a CPI
sobre o escândalo, se realmente for
instalada, terá um trabalho gigantesco para apurar todos os casos.
Normalmente, uma comissão de inquérito derruba todos os prazos estipulados para seu funcionamento.
Para determinar quem abusou (e
não importam se as quantias foram
grandes ou pequenas), a CPI levará
todo o ano de 2008 e dificilmente
chegará a qualquer conclusão.
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