São Paulo, sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

Cartões de hoje e de ontem


Havia uma churrascaria dando sopa, com um variado cardápio que incluía até jacaré

NÃO VOU comentar o mais recente escândalo que estourou por aí, comprometendo o atual governo e, de quebra, recolocando na fogueira o governo anterior. O uso e o abuso dos cartões corporativos tinham de dar naquilo que antigamente os jornais não publicavam: "mierda". (Vai em espanhol mesmo, para não ferir ouvidos mais sensíveis.)
Prefiro contar um episódio antigo, para mostrar como eram as coisas num tempo em que deputados e senadores iam de bonde para a Câmara e o Senado. E o presidente da República, depois do almoço, ia a pé do Palácio Guanabara para o palácio do Catete, acompanhado de um único secretário, que lhe levava a pasta dos despachos.
Era prefeito do Distrito Federal o engenheiro Hildebrando de Góis, um técnico baiano que havia saneado o grande pântano que era a Baixada Fluminense. Ele tinha por costume, uma vez por semana, visitar as obras que estava realizando, e os jornalistas credenciados na sala de imprensa da prefeitura o acompanhavam em excursão.
Com menos de 20 anos, eu substituía o pai que era o decano daquele grupo de profissionais (uns 15, incluindo alguns radialistas). Fomos dar com os costados num lugar onde nunca tinha posto os pés, Engenho da Rainha; uma estrada ali estava sendo asfaltada. O programa incluía um almoço na sede de uma associação de moradores locais, almoços geralmente vastos e rematados por sobremesas caseiras e discursos de circunstância.
Acontece que, durante a noite, morrera a mulher de um dos diretores da entidade. Mal informado, ele promoveu o velório na própria sede onde o almoço estava marcado. Foi um corre-corre danado, mas, ao saber que estavam providenciando a mudança do velório para uma funerária distante, o prefeito agradeceu o almoço, mas disse que iria almoçar com a sua comitiva no primeiro restaurante que encontrasse à beira da estrada.
Por sorte, havia uma churrascaria dando sopa, oferecendo, além das viandas tradicionais, um variado cardápio que incluía de jacaré a animais dos quais nunca tinha ouvido falar. Colocamos os paletós em cima das cadeiras; o prefeito era o único que usava colete, um homem elegante acima de tudo. Comemos vastamente, a fome era muita. Na hora de pagar, o secretário da Fazenda, que estava presente, fez o rateio entre os participantes, dividindo a despesa entre todos, menos um repórter da "Gazeta de Notícias" que estava fazendo anos naquele dia e que mereceu um "parabéns pra você" puxado pelo próprio prefeito.
Naquele tempo não havia ainda cartão de crédito, muito menos cartão corporativo. Despesas de emergência como aquela tinham um rito próprio para serem processadas. A autoridade ou o funcionário, em exercício de um cargo público, recebiam um adiantamento proporcional à despesa, se houvesse previsão de algum custo adicional à missão. Levava os comprovantes para a repartição que lhe adiantara o dinheiro. Em caso de emergência mesmo, como a do almoço no Engenho da Rainha, cada qual levava o seu comprovante e em dois ou três dias acertava suas contas com o Estado ou com a prefeitura.
Afinal, a regra não valia apenas para os órgãos do governo. As empresas usavam o mesmo processo, pagando diárias a seus funcionários que se deslocavam em serviço e teriam de enfrentar despesas extras e emergenciais. Ou reembolsando-os, mas sempre de acordo com os comprovantes. Evidente que havia uma ou outra vigarice, gente que gastava 30 cruzeiros num deslocamento de táxi, mas apresentava um recibo de 50. Era um problema de consciência funcional.
O escândalo dos cartões corporativos, que agora estourou, tornou-se possível pelo número exagerado de usuários e pelo conceito elástico de "emergência" que cada qual adotou por conta própria. De qualquer forma, uma despesa de R$ 4,20 não podia ser prevista e dificilmente constituiria uma emergência funcional.
Por essas e outras, acho que a CPI sobre o escândalo, se realmente for instalada, terá um trabalho gigantesco para apurar todos os casos. Normalmente, uma comissão de inquérito derruba todos os prazos estipulados para seu funcionamento. Para determinar quem abusou (e não importam se as quantias foram grandes ou pequenas), a CPI levará todo o ano de 2008 e dificilmente chegará a qualquer conclusão.


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