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São Paulo, sábado, 15 de março de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

"MITOLOGIAS"

Em textos curtos, ensaísta francês faz crítica à cultura de massas

Roland Barthes se diverte com fetiches da classe média

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Quem leu os romances policiais de Agatha Christie certamente se lembra daquelas situações em que a chave do mistério está, por exemplo, em estabelecer quais as relações entre uma cantiga de roda, um fragmento de aparelho para surdez e uma marca de fumo para cachimbo -e só o detetive prestou atenção nesses detalhes.
Para Roland Barthes (1915-80), não é que a crítica literária deva assemelhar-se à elucidação de enigmas desse gênero. Mas a própria literatura, ou mesmo a vida cotidiana, se a entendermos como uma forma de linguagem, reúne o tempo todo minúcias e insignificâncias como as que encontramos nos romances policiais -e o grande prazer do leitor, ou do crítico, ou do semiólogo, será o de ver em tudo isso pistas de alguma outra coisa. Pistas não de um crime, mas, na maior parte das vezes, de uma artimanha sem proveito, de uma astúcia sem vítimas.
Essa astúcia sem vítimas talvez seja a literatura, e a atividade crítica de Roland Barthes seria, então, equivalente à de um detetive que não se preocupa em incriminar ninguém -de forma bem diversa, note-se de passagem, dos terríveis julgamentos que uma de suas influências, Jean-Paul Sartre, gostava de fazer naqueles tempos. A tendência de Barthes é a de mobilizar máxima agudeza na descoberta de novas fontes de prazer estético, retirando-o dos lugares mais improváveis.
Publicado em 1957, "Mitologias" é um dos primeiros livros de Barthes e certamente o mais prazeroso que ele já escreveu. Não é prazeroso apenas para o leitor. O próprio autor se diverte muitíssimo ao analisar, em textos curtos e jornalísticos, pequenas crenças e fetiches da classe média: o mundo das revistas femininas, os anúncios de detergentes, os espetáculos de luta livre, os filmes de Marlon Brando, um lançamento da indústria automobilística, o striptease, uma enchente em Paris.
São textos curtos -cinco ou seis parágrafos- que Barthes escrevia para uma revista de informação geral, "L'Observateur". Tornaram-se um clássico da crítica à cultura de massa -termo que Roland Barthes só emprega na introdução do livro, e que nem sempre viria ao caso nas análises que ele faz.
O teatro de vanguarda ou um dos grandes cantores clássicos da França no século 20, o barítono Gérard Souzay, são criticados com a mesma ironia que Barthes dedica às estrelas de cinema, à ficção científica ou às primeiras manifestações do marketing eleitoral na política francesa.
A mais de 50 anos de distância, pouca coisa parece ter envelhecido em "Mitologias". Os anúncios de detergente, o estilo das revistas femininas, as previsões da astrologia, temas analisados por Barthes, mantêm-se praticamente inalteradas ao longo do tempo. Causa certa estranheza, talvez, topar com um artigo especialmente dedicado ao plástico -material, presume-se, que parecia relativamente novo.
Leia-se, entretanto, um trecho do artigo de Barthes sobre o tema: "Na ordem poética das grandes substâncias, [o plástico" é um material desfavorecido, perdido entre a efusão das borrachas e a dureza plana do metal: não realiza nenhum dos verdadeiros produtos da ordem mineral, espumas, fibras, camadas. É uma substância "alterada': seja qual for o estado em que se transforme, o plástico conserva uma aparência flocosa, algo turvo, cremoso e entorpecido, uma impotência em atingir o liso triunfante da Natureza".
A riqueza descritiva de um texto como esse transcende a ocasião em que foi escrito. Diz muito, também, a respeito da própria intenção de Barthes ao analisar todo o mundo da cultura pequeno-burguesa. É como se, em cada parágrafo desse tipo -ou nas descrições de um filé com fritas, de um copo de vinho, de um campeonato de ciclismo-, o autor quisesse valorizar a inesgotável e deliciosa "realidade" que existe nas coisas. Ao passo que, no mundo ideologicamente estreito das certezas conservadoras, o significado de cada objeto se esgota numa percepção rotineira e viciada pela suposta "sensatez" das classes médias.
É assim que o filé com fritas se torna emblema nacional da França, por exemplo, em vez de ser apreciado gulosamente, como deve. Para além da vigorosa denúncia política que está por trás dessas páginas (Barthes, naquela época, era bem de esquerda), haveria nisso um dos "crimes", se podemos dizer assim, que nosso investigador de mitos se encarregará de decifrar.
Talvez pareça algo limitada, hoje em dia, a tentativa de formalização teórica que conclui o livro, depois de tantas páginas extraordinárias de uma prosa aparentemente improvisada, mas sempre atenta à variada textura do real. A ligação entre teoria e análise concreta é apresentada, contudo, de forma transparente e persuasiva.
Tratando de conciliar as influências de Sartre, de Bachelard e de Brecht com as conquistas da linguística e de Lévi-Strauss, que na época pareciam fundadoras de uma nova era nas ciências humanas, científicas, Barthes faz brilhar, acima de tudo, sua incomparável inteligência.
Só agora a Difel apresenta "Mitologias" em sua versão completa. Vários textos, como um sobre a revista "Elle" e outro sobre um novo modelo da Citroën, inexplicavelmente tinham ficado de fora das edições anteriores do livro. Alguns aperfeiçoamentos na tradução também foram feitos, e são bem-vindos. "O utente da greve", por exemplo, virou "O usuário da greve". O livro de Barthes merecia esse mínimo de cuidado.


Mitologias
     Autor: Roland Barthes Tradução: Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer Editora: Difel Quanto: R$ 32 (256 págs.)



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