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LIVRO/LANÇAMENTO
"MITOLOGIAS"
Em textos curtos, ensaísta francês faz crítica à cultura de massas
Roland Barthes se diverte
com fetiches da classe média
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Quem leu os romances policiais de Agatha Christie certamente se lembra daquelas situações em que a chave do mistério
está, por exemplo, em estabelecer
quais as relações entre uma cantiga de roda, um fragmento de aparelho para surdez e uma marca de
fumo para cachimbo -e só o detetive prestou atenção nesses detalhes.
Para Roland Barthes (1915-80),
não é que a crítica literária deva
assemelhar-se à elucidação de
enigmas desse gênero. Mas a própria literatura, ou mesmo a vida
cotidiana, se a entendermos como
uma forma de linguagem, reúne o
tempo todo minúcias e insignificâncias como as que encontramos nos romances policiais -e o
grande prazer do leitor, ou do crítico, ou do semiólogo, será o de
ver em tudo isso pistas de alguma
outra coisa. Pistas não de um crime, mas, na maior parte das vezes, de uma artimanha sem proveito, de uma astúcia sem vítimas.
Essa astúcia sem vítimas talvez
seja a literatura, e a atividade crítica de Roland Barthes seria, então,
equivalente à de um detetive que
não se preocupa em incriminar
ninguém -de forma bem diversa, note-se de passagem, dos terríveis julgamentos que uma de suas
influências, Jean-Paul Sartre, gostava de fazer naqueles tempos. A
tendência de Barthes é a de mobilizar máxima agudeza na descoberta de novas fontes de prazer
estético, retirando-o dos lugares
mais improváveis.
Publicado em 1957, "Mitologias" é um dos primeiros livros de
Barthes e certamente o mais prazeroso que ele já escreveu. Não é
prazeroso apenas para o leitor. O
próprio autor se diverte muitíssimo ao analisar, em textos curtos e
jornalísticos, pequenas crenças e
fetiches da classe média: o mundo
das revistas femininas, os anúncios de detergentes, os espetáculos de luta livre, os filmes de Marlon Brando, um lançamento da
indústria automobilística, o striptease, uma enchente em Paris.
São textos curtos -cinco ou
seis parágrafos- que Barthes escrevia para uma revista de informação geral, "L'Observateur".
Tornaram-se um clássico da crítica à cultura de massa -termo
que Roland Barthes só emprega
na introdução do livro, e que nem
sempre viria ao caso nas análises
que ele faz.
O teatro de vanguarda ou um
dos grandes cantores clássicos da
França no século 20, o barítono
Gérard Souzay, são criticados
com a mesma ironia que Barthes
dedica às estrelas de cinema, à ficção científica ou às primeiras manifestações do marketing eleitoral
na política francesa.
A mais de 50 anos de distância,
pouca coisa parece ter envelhecido em "Mitologias". Os anúncios
de detergente, o estilo das revistas
femininas, as previsões da astrologia, temas analisados por Barthes, mantêm-se praticamente
inalteradas ao longo do tempo.
Causa certa estranheza, talvez, topar com um artigo especialmente
dedicado ao plástico -material,
presume-se, que parecia relativamente novo.
Leia-se, entretanto, um trecho
do artigo de Barthes sobre o tema:
"Na ordem poética das grandes
substâncias, [o plástico" é um material desfavorecido, perdido entre a efusão das borrachas e a dureza plana do metal: não realiza
nenhum dos verdadeiros produtos da ordem mineral, espumas,
fibras, camadas. É uma substância "alterada': seja qual for o estado em que se transforme, o plástico conserva uma aparência flocosa, algo turvo, cremoso e entorpecido, uma impotência em atingir
o liso triunfante da Natureza".
A riqueza descritiva de um texto
como esse transcende a ocasião
em que foi escrito. Diz muito,
também, a respeito da própria intenção de Barthes ao analisar todo
o mundo da cultura pequeno-burguesa. É como se, em cada parágrafo desse tipo -ou nas descrições de um filé com fritas, de
um copo de vinho, de um campeonato de ciclismo-, o autor
quisesse valorizar a inesgotável e
deliciosa "realidade" que existe
nas coisas. Ao passo que, no mundo ideologicamente estreito das
certezas conservadoras, o significado de cada objeto se esgota numa percepção rotineira e viciada
pela suposta "sensatez" das classes médias.
É assim que o filé com fritas se
torna emblema nacional da França, por exemplo, em vez de ser
apreciado gulosamente, como deve. Para além da vigorosa denúncia política que está por trás dessas páginas (Barthes, naquela
época, era bem de esquerda), haveria nisso um dos "crimes", se
podemos dizer assim, que nosso
investigador de mitos se encarregará de decifrar.
Talvez pareça algo limitada, hoje em dia, a tentativa de formalização teórica que conclui o livro, depois de tantas páginas extraordinárias de uma prosa aparentemente improvisada, mas sempre
atenta à variada textura do real. A
ligação entre teoria e análise concreta é apresentada, contudo, de
forma transparente e persuasiva.
Tratando de conciliar as influências de Sartre, de Bachelard e
de Brecht com as conquistas da
linguística e de Lévi-Strauss, que
na época pareciam fundadoras de
uma nova era nas ciências humanas, científicas, Barthes faz brilhar, acima de tudo, sua incomparável inteligência.
Só agora a Difel apresenta "Mitologias" em sua versão completa.
Vários textos, como um sobre a
revista "Elle" e outro sobre um
novo modelo da Citroën, inexplicavelmente tinham ficado de fora
das edições anteriores do livro.
Alguns aperfeiçoamentos na tradução também foram feitos, e são
bem-vindos. "O utente da greve",
por exemplo, virou "O usuário da
greve". O livro de Barthes merecia
esse mínimo de cuidado.
Mitologias
Autor: Roland Barthes
Tradução: Rita Buongermino, Pedro de
Souza e Rejane Janowitzer
Editora: Difel
Quanto: R$ 32 (256 págs.)
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