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São Paulo, sábado, 15 de março de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

"O PIANISTA"

Obra relata odisséia do autor durante ocupação nazista na Polônia

Autobiografia expõe todas as nuanças da barbárie

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Escrito pelo músico judeu polonês Wladyslaw Szpilman (1911-2000) em 1945, quando a poeira dos escombros da Segunda Guerra ainda não tinha assentado, "O Pianista", além de documento histórico de valor inestimável, pode ser lido como uma dolorosa indagação sobre os paradoxos da condição humana.
Não foi por acaso que Roman Polanski resolveu levar esse testemunho às telas -em cartaz no Brasil. São evidentes as coincidências entre a trajetória de Szpilman e a do próprio cineasta, outro judeu polonês que sobreviveu à ocupação nazista (só que em Cracóvia e não em Varsóvia) e viu a família ser deportada para os campos de extermínio.
Mas, para além das afinidades biográficas, o que parece ter atraído Polanski para o livro é a reflexão que este traz embutida sobre o mal. Sim, os sofrimentos e peripécias vividos pelo pianista na Varsóvia ocupada pelos nazistas comprovam que o mal existe, mas não tem um "eixo" tão claro como querem nos fazer crer George W. Bush e outros espíritos primitivos de nosso tempo.
Para quem formou uma imagem da Segunda Guerra a partir dos filmes de Hollywood, nos quais os bandidos e mocinhos estão separados com nitidez, "O Pianista" está cheio de sombras e ruídos perturbadores.
Claro que há, como moldura e fator determinante, o fato brutal da agressão nazista. Mas, dentro desse quadro, nessa espécie de laboratório submetido a condições anormais de temperatura e pressão, revelam-se todos os comportamentos humanos possíveis.
Sob a ocupação alemã, cada polonês -fosse ele judeu ou ariano- era um feixe de possibilidades de reação, que iam do suicídio à adesão, da revolta à colaboração, da apatia à crueldade.
O que "O Pianista" descreve com clareza e surpreendente distanciamento é o complexo mecanismo de opressão e espoliação que se instaurou na Polônia ocupada: as entranhas do mercado negro, as delações, as alianças espúrias entre judeus endinheirados e a Gestapo, a brutalidade dos soldados ucranianos recrutados pelos nazistas, o medo, a vergonha, a fome, a sujeira, o caos.
De quebra, com discrição e modéstia, Szpilman descreve a resistência polonesa clandestina, traçando em poucas linhas um quadro que lembra o ambiente dos primeiros e magníficos filmes de Andrzej Wajda.
Além -ou aquém- de tudo isso, pode-se ler o livro apenas como uma eletrizante aventura, em que o herói é salvo inúmeras vezes pelo mais puro acaso. O tom com que o autor conta essas peripécias é o de alguém ainda atordoado, que vê as coisas de um modo estranho e oblíquo.
Szpilman perfez uma singularíssima odisséia, praticamente sem sair do lugar, enquanto o mundo rugia e ruía à sua volta.
Viveu semanas comendo migalhas de pão embolorado e bebendo água de banheiras, viu crianças serem assassinadas friamente, mulheres serem queimadas vivas, fuzilamentos em massa e, ocasionalmente, um ou outro gesto de compaixão, como o do capitão alemão Wilm Hosenfeld, que lhe salvou a vida.
Trechos dos diários de Hosenfeld (que terminou seus dias num campo soviético de prisioneiros, em 1952) foram incluídos em "O Pianista". Neles se encontra a frase que talvez melhor sintetize o livro: "Todos os seres humanos têm dentro de si maldade e instintos animalescos que afloram quando não são coibidos".


O Pianista
     Autor: Wladislaw Szpilman Tradução: Tomasz Barcinski Editora: Record Quanto: R$ 36 (237 págs.)



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