São Paulo, terça-feira, 15 de março de 2005

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CINEMA

Retrospectiva do Canal Brasil, que homenageia 66 anos de nascimento do diretor, exibe filmes do exílio e raridades

Ciclo ilumina o Glauber Rocha obscuro

BRUNO YUTAKA SAITO
DA REDAÇÃO

Na comemoração dos 66 anos de nascimento de Glauber Rocha, o caráter de guerrilha de seu cinema adquire outros contornos, agora numa espécie de luta pela sobrevivência. À parte o fato de ser cada dia menos compreendido, um "óvni" visto por poucos, aqui e ali surgem eventos especiais ligados ao cineasta.
Um dos mais interessantes e condizentes com as contradições de Glauber é a mostra que o Canal Brasil exibe a partir de hoje, que, além de trazer seus longas conhecidos, recupera cinco produções mais obscuras, inéditas na televisão. São elas: o curta "O Pátio", primeiro filme do cineasta; os "filmes do exílio" "O Leão de Sete Cabeças", "Cabeças Cortadas" e "Claro", além de "Câncer".
Homenagem condizente porque a TV foi um dos veículos que melhor abrigaram a linguagem de Glauber (1939-1981) nos anárquicos quadros que fazia para o programa "Abertura" (Tupi). Contraditória porque não será desta vez que sua obra sairá do "gueto do cinema" para alcançar as massas, já que a exibição está restrita aos limites estreitos da TV paga.
À sua maneira, os longas estrangeiros podem explicar o inclassificável, já que o "grande" público brasileiro viu um buraco entre "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969) e "Idade da Terra" (1980). "Sem os filmes do exílio, você pode achar que o Glauber pirou. Ele partiu de produções que tinham uma certa linha narrativa para desestruturar e radicalizar ainda mais essa linguagem", explica a professora de cinema da UFRJ Ivana Bentes, organizadora do livro "Glauber Rocha - Cartas ao Mundo".
Com o Brasil entalado na garganta, o cineasta tentaria abraçar o mundo entre 1969 e 1976, no embalo nada amigável da ditadura militar em seu encalço. No começo do exílio, Glauber vivia seu auge e não precisava de nenhum Oscar para isso. Consagrado como melhor diretor em Cannes, por "Dragão", as propostas para filmar no exterior avolumaram.
"Exatamente nesse momento ele radicalizou a linguagem e realizou longas que não correspondiam à idéia de um cineasta brasileiro num mercado internacional", diz o pesquisador e crítico Ismail Xavier. "Glauber não assumiu o papel de alguns cineastas que, após fazer carreira em seu país de origem, vão para EUA ou Europa e fazem filmes para o grande mercado, como Roman Polanski ou Milos Forman."
Glauber iria longe, literalmente, ao decidir filmar seu "Leão..." na África. "Materialista e dialético, é um filme que despreza a retórica idealista burguesa reacionária", diria o cineasta em uma carta.
No mesmo ano, e ainda impulsionado por Cannes, Glauber alcança a Espanha, mas não facilita. Seu longa seguinte, "Cabeças Cortadas", vê o funeral das ditaduras latino-americanas. "É um filme já meio desencantado, mas com humor e influências de Salvador Dalí e Luis Buñuel", diz Bentes.
Em seguida, "Claro" nasceria em Roma, filho do relacionamento entre o diretor e sua então musa (e também da nouvelle vague) Juliet Berto. "Glauber sai de trás da câmera e entra no filme. É um conceito da arte moderna, como o artista plástico de hoje que faz intervenções em si mesmo", afirma Carlos Augusto Calil, diretor do Centro Cultural São Paulo e um dos principais responsáveis pela chegada dessas produções ao Brasil, no começo dos anos 80. No entanto, acredita que esses três longas são "o início da decadência de Glauber". "Ele quis internacionalizar o conceito de "estética da fome", mas não foi bem-sucedido."
Já os outros dois inéditos da mostra também iluminam a obra do cineasta. "O Pátio" (1959) retrata seus primeiros passos e, claro, divide opiniões. "É fundamental, um filme quase concretista", acredita Bentes. "É apenas um exercício formal que só interessa como curiosidade", diz Calil.
"Câncer", no entanto, desperta o interesse de Calil. Feito durante um intervalo da equipe de produção de "Dragão...", seria o precursor de outro movimento. "É o mais importante e radical dos filmes marginais", diz Calil.
Na onda das comemorações, Glauber ganha retrospectiva nos eventos do Ano do Brasil na França a partir de amanhã, além de ter seu "Terra em Transe" recuperado para cópias em DVD e com reestréia nos cinemas brasileiros, ambos previstos para este ano.
A mostra na TV, no entanto, tem seus lampejos de ousadia ao quebrar a monotonia de protocolo de comemorações anteriores.


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