São Paulo, terça-feira, 15 de março de 2005

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CINEMA

Estrela de festival no Reino Unido, Pawel Pawlikowski rompe com sociologismo das atuais produções britânicas

Polonês brilha com filme de amor lésbico

LÚCIA NAGIB
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LEEDS

No debate após a projeção de seu último filme, "My Summer of Love" (meu verão do amor), Pawel Pawlikowski foi apresentado como "o salvador do cinema britânico". Exageros à parte, o cineasta polonês, residente no Reino Unido desde 1977, tem razões de sobra para ser a estrela do Festival de Cinema de Bradford, que se encerra no sábado. Seus filmes de ficção são ambientados nas colinas e campos de West Yorkshire, no norte da Inglaterra, onde também se localiza Bradford. E sua formação cinematográfica, ainda na Varsóvia natal, incluiu inúmeros filmes britânicos vistos no Conselho Britânico (onde sua mãe era funcionária), inclusive os produzidos em Bradford, importante centro cinematográfico desde o período silencioso.
Hoje em dia, porém, Pawlikowski esnoba o cinema inglês, que julga limitado seja pelo esquematismo sociológico ou pelo artificialismo dos dramas de época. De fato, seus filmes dão prova de um talento para a composição de paisagens e tipos humanos em tudo diverso da austera tradição realista inglesa. É verdade que ele também se iniciou no documentário, como manda o figurino local, trabalhando para a rede de televisão BBC no final dos anos 80. Mas, afinal, foi demitido em 1995 por não se adaptar às crescentes pressões comerciais sobre sua criatividade. A partir de então tem se dedicado à ficção, onde dá livre curso à sua própria visão do país e seus habitantes.
O média-metragem "Twockers" (gíria policial para jovens delinqüentes que roubam acessórios de automóveis), de 1998, teria tudo para se alinhar entre os tradicionais filmes de esquerda britânicos. São crianças de moradias populares nos arredores de Halifax (West Yorkshire) que passam o tempo negociando objetos furtados. Mas, em lugar da denúncia social, Pawlikowski prefere focalizar a paixão platônica de um dos moleques por uma adolescente grávida, salpicando a história com humor e momentos de deleite dos pequenos vândalos em meio à sucata que colecionam no alto das colinas.
"Last Resort", de 2000, longa de ficção sobre uma imigrante russa, valeu ao diretor já veterano o curioso "prêmio revelação" da Academia Britânica de Cinema e Televisão (Bafta). Mas a consagração veio com "My Summer of Love", imediato sucesso de público e ganhador do Bafta 2004 de melhor filme britânico. Adaptação livre do romance de mesmo nome de Helen Cross, o filme conta uma história de amor homossexual entre duas garotas adolescentes de classes sociais opostas. Mona, a menina pobre, tem por hobby pintar, dado que o diretor utiliza para explorar cores e texturas. A abertura é um close-up de sua mão rabiscando freneticamente a superfície áspera da parede de seu quarto. A seguir, a câmera pesquisa minuciosamente seu corpo estendido na relva sob o sol, a ponto de destacar cada sarda e mesmo cada poro de seu rosto.
O efeito é a singularização do personagem, embora a ótima atriz Nathalie Press seja um exemplar comum do biótipo inglês. Assim transfigurada, Mona atrai o olhar de Tamsin, ou melhor, do cavalo que ela monta, do qual temos um novo close-up, desta vez de seu olho enorme e negro, que encontra o olho verde de Mona. Classe alta e baixa se comunicam pelo intermédio desse cavalo curioso, e a paixão se configura como pesquisa mútua das características físicas e intelectuais a que ambas se entregam. Com mais aptidão que obras declaradamente políticas, o filme delineia uma a uma as diferenças de classe: os sotaques, as vestimentas, os gostos artísticos, as histórias pessoais, como a da (falsa) irmã anoréxica de Tamsin e do (verdadeiro) irmão ex-presidiário convertido ao cristianismo carismático de Mona. O intercâmbio dessas informações ocorre em momentos eróticos que incluem até uma dança ao som de Gilberto Gil.
A habilidade narrativa de Pawlikowski já chamou a atenção de Hollywood. Um convite para dirigir "Sylvia" (filme sobre a escritora Sylvia Plath, estrelado por Gwyneth Paltrow) ao final não vingou "por discordâncias estéticas". Mas novas propostas têm chegado, e especula-se até quando o diretor se contentará com os tipos britânicos e as paisagens de Yorkshire.


Lúcia Nagib é professora de cinema na Universidade Estadual de Campinas e autora de "O Cinema da Retomada" (ed. 34) e "Nascido das Cinzas" (Edusp)

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