São Paulo, terça-feira, 15 de março de 2005

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BERNARDO CARVALHO

Rohmer e o "Big Brother"

Dizem que o inferno está cheio de boas intenções e que não é a vontade do autor que faz a obra, mas então qual a diferença entre o "Big Brother" e um filme de Eric Rohmer? É claro que são muitas e que a comparação também tem muito de provocação e de sofisma. Mas, de fato, há aspectos comuns aos dois que tornam a pergunta menos ilógica e impertinente do que pode parecer à primeira vista.
Faz poucos dias vi pela primeira vez uma cena do "Big Brother", enquanto passava de um canal para o outro ao acaso. E, por alguma razão, fiquei vidrado. Do mesmo jeito que fico vidrado nos diálogos anódinos de alguns filmes de Rohmer. É verdade que foi só por alguns instantes. Mas já foi o suficiente.
O cenário era o interior de uma casa vazia, se não fosse por, num dos cantos, perto da piscina, três pessoas confabulando em segredo e, a alguns metros dali, numa outra sala, duas outras fazendo o mesmo. No resto, tudo era silêncio e paz. Havia um aspecto estranho e irreal nessa simultaneidade esvaziada. Ao mesmo tempo, o que essas pessoas diziam -se não fosse por uma ou outra expressão realmente impagável, a despeito delas- era de um prosaísmo absoluto.
Tentavam estabelecer táticas de ação, num "movimento que consiste (...) em projetar uma idéia, uma imagem delas mesmas no espaço, na direção das outras personagens", permitindo ao telespectador ver "suas pequenas mentiras, suas ilusões, seu narcisismo e o modo como se enganam sobre si mesmas (e sobre os outros)".
A citação não é de nenhum semiólogo da comunicação mas do crítico francês Joël Magny num pequeno livro sobre Eric Rohmer e, mais especificamente, num capítulo sobre a série de filmes "Comédias e Provérbios": a partir de uma situação inicial, "as relações de um ser com os outros se tornam matematicamente ilimitadas". Um jogo de projeções e probabilidades que pode ser percebido tanto nas confabulações dos participantes do "Big Brother" quanto, para dar apenas um exemplo entre vários, nos diálogos entre a alcoviteira (Arielle Dombasle) e a protagonista (Béatrice Romand) de "Um Casamento Perfeito" (Le Beau Mariage, 1982), em cartaz em São Paulo. Ambos são igualmente imbecis. Ambos são resultado de um grupo de pessoas, atores ou não, submetidos a uma situação inicial. Então, qual a diferença entre um e outro?
Em princípio, um se apresenta como ficção e o outro como "realidade". Nas "Comédias e Provérbios", de Rohmer, o provérbio inicial ("quem divaga se perde" etc.) é um pretexto para a comédia que se desenvolve a partir daí como ilustração. Tudo é matematicamente calculado, embora a impressão seja de que as cenas e os diálogos acontecem ao acaso, como na realidade.
"É uma alegoria do meu cinema, cujos antecedentes podem ser encontrados em Renoir. Deixamos as pessoas fazer o que quiserem, sabendo que, se não for bom, não vai funcionar -e que, se for bom, vai ficar. (...) É preciso ter um método e uma idéia, mas se essa idéia for demasiado precisa, não é interessante. Um filme não deve ser simplesmente a aplicação da sua idéia. Se tudo se conforma com o que você desenhou, você não é um diretor, mas um simples executor", disse o cineasta, em 1998, à revista "Les Inrockuptibles".
Ou seja: Rohmer deixa os atores fazerem o que quiserem a partir de uma situação inicial, mas só guarda o que quer. O desenho vem depois. De alguma maneira, é o que também acontece com o "Big Brother". Em Rohmer, as personagens são muitas vezes idiotas. Assim como no "Big Brother". Afinal, qual é a diferença?
O óbvio: a consciência e a idéia por trás do método. As personagens de Rohmer são deliberadamente idiotas. As do "Big Brother", não. A comédia vem do entendimento do espectador, que reconhece essa consciência nos atores e no "desenho" do diretor. É a celebração da inteligência. Na inconsciência do "Big Brother", o que há é constrangimento e humilhação diante do que é demasiado humano. O que se expõe ali não é a comédia (que depende da distância da consciência), é o fascínio inconsciente da burrice.
Isso não quer dizer que não haja método ou idéia por trás do "Big Brother". Ao contrário, tudo também é extremamente controlado. À imagem dos atores de Rohmer, os participantes do "Big Brother" também fazem o que querem a partir de uma situação inicial, e os responsáveis pelo programa guardam o que bem entendem. A diferença não é entre "realidade" e ficção, mas entre as intenções por trás do método. E a intenção do "Big Brother" não é a comédia nem a consciência.
Voltando ao início, a comparação serve de pretexto para falar de uma questão paradoxal nas artes contemporâneas: é claro que não adianta querer ser artista para fazer arte; não basta querer para realizar uma grande obra, mas a grande obra depende ainda assim da intenção do autor, e de sua consciência. "A arte não existe: ela se auto-proclama", dizia o crítico americano Harold Rosenberg nos anos 60, a despeito do risco das imposturas. A intenção do autor conta -e muito, o que deveria ser óbvio-, ao contrário do que alguns hoje proclamam em desespero de causa, como se a sobrevivência e a independência da crítica dependessem de uma suposta inconsciência dos artistas.


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