|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BERNARDO CARVALHO
Rohmer e o "Big Brother"
Dizem que o inferno está
cheio de boas intenções e
que não é a vontade do autor que
faz a obra, mas então qual a diferença entre o "Big Brother" e um
filme de Eric Rohmer? É claro que
são muitas e que a comparação
também tem muito de provocação e de sofisma. Mas, de fato, há
aspectos comuns aos dois que tornam a pergunta menos ilógica e
impertinente do que pode parecer
à primeira vista.
Faz poucos dias vi pela primeira
vez uma cena do "Big Brother",
enquanto passava de um canal
para o outro ao acaso. E, por alguma razão, fiquei vidrado. Do
mesmo jeito que fico vidrado nos
diálogos anódinos de alguns filmes de Rohmer. É verdade que foi
só por alguns instantes. Mas já foi
o suficiente.
O cenário era o interior de uma
casa vazia, se não fosse por, num
dos cantos, perto da piscina, três
pessoas confabulando em segredo
e, a alguns metros dali, numa outra sala, duas outras fazendo o
mesmo. No resto, tudo era silêncio e paz. Havia um aspecto estranho e irreal nessa simultaneidade
esvaziada. Ao mesmo tempo, o
que essas pessoas diziam -se não
fosse por uma ou outra expressão
realmente impagável, a despeito
delas- era de um prosaísmo absoluto.
Tentavam estabelecer táticas de
ação, num "movimento que consiste (...) em projetar uma idéia,
uma imagem delas mesmas no
espaço, na direção das outras personagens", permitindo ao telespectador ver "suas pequenas
mentiras, suas ilusões, seu narcisismo e o modo como se enganam
sobre si mesmas (e sobre os outros)".
A citação não é de nenhum semiólogo da comunicação mas do
crítico francês Joël Magny num
pequeno livro sobre Eric Rohmer
e, mais especificamente, num capítulo sobre a série de filmes "Comédias e Provérbios": a partir de
uma situação inicial, "as relações
de um ser com os outros se tornam matematicamente ilimitadas". Um jogo de projeções e probabilidades que pode ser percebido tanto nas confabulações dos
participantes do "Big Brother"
quanto, para dar apenas um
exemplo entre vários, nos diálogos entre a alcoviteira (Arielle
Dombasle) e a protagonista (Béatrice Romand) de "Um Casamento Perfeito" (Le Beau Mariage,
1982), em cartaz em São Paulo.
Ambos são igualmente imbecis.
Ambos são resultado de um grupo de pessoas, atores ou não, submetidos a uma situação inicial.
Então, qual a diferença entre um
e outro?
Em princípio, um se apresenta
como ficção e o outro como "realidade". Nas "Comédias e Provérbios", de Rohmer, o provérbio inicial ("quem divaga se perde" etc.)
é um pretexto para a comédia que
se desenvolve a partir daí como
ilustração. Tudo é matematicamente calculado, embora a impressão seja de que as cenas e os
diálogos acontecem ao acaso, como na realidade.
"É uma alegoria do meu cinema, cujos antecedentes podem ser
encontrados em Renoir. Deixamos as pessoas fazer o que quiserem, sabendo que, se não for bom,
não vai funcionar -e que, se for
bom, vai ficar. (...) É preciso ter
um método e uma idéia, mas se
essa idéia for demasiado precisa,
não é interessante. Um filme não
deve ser simplesmente a aplicação da sua idéia. Se tudo se conforma com o que você desenhou,
você não é um diretor, mas um
simples executor", disse o cineasta, em 1998, à revista "Les Inrockuptibles".
Ou seja: Rohmer deixa os atores
fazerem o que quiserem a partir
de uma situação inicial, mas só
guarda o que quer. O desenho
vem depois. De alguma maneira,
é o que também acontece com o
"Big Brother". Em Rohmer, as
personagens são muitas vezes
idiotas. Assim como no "Big Brother". Afinal, qual é a diferença?
O óbvio: a consciência e a idéia
por trás do método. As personagens de Rohmer são deliberadamente idiotas. As do "Big Brother", não. A comédia vem do entendimento do espectador, que
reconhece essa consciência nos
atores e no "desenho" do diretor.
É a celebração da inteligência. Na
inconsciência do "Big Brother", o
que há é constrangimento e humilhação diante do que é demasiado humano. O que se expõe ali
não é a comédia (que depende da
distância da consciência), é o fascínio inconsciente da burrice.
Isso não quer dizer que não haja método ou idéia por trás do
"Big Brother". Ao contrário, tudo
também é extremamente controlado. À imagem dos atores de
Rohmer, os participantes do "Big
Brother" também fazem o que
querem a partir de uma situação
inicial, e os responsáveis pelo programa guardam o que bem entendem. A diferença não é entre
"realidade" e ficção, mas entre as
intenções por trás do método. E a
intenção do "Big Brother" não é a
comédia nem a consciência.
Voltando ao início, a comparação serve de pretexto para falar
de uma questão paradoxal nas
artes contemporâneas: é claro que
não adianta querer ser artista para fazer arte; não basta querer para realizar uma grande obra, mas
a grande obra depende ainda assim da intenção do autor, e de sua
consciência. "A arte não existe:
ela se auto-proclama", dizia o crítico americano Harold Rosenberg
nos anos 60, a despeito do risco
das imposturas. A intenção do
autor conta -e muito, o que deveria ser óbvio-, ao contrário do
que alguns hoje proclamam em
desespero de causa, como se a sobrevivência e a independência da
crítica dependessem de uma suposta inconsciência dos artistas.
Texto Anterior: "Reality show": "O Aprendiz 2" apóia-se em personagens fortes Próximo Texto: Panorâmica - Livro 1: Britânica fará continuação de Peter Pan Índice
|