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CARTAS DA EUROPA
Televisão em preto-e-branco
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Confesso: se a minha pele
fosse ligeiramente mais escura, eu não gostaria de ter sobre
mim o paternalismo das patrulhas. Discriminação positiva? Discriminação negativa? Não distingo. A cor da pele é a cor da pele.
Elevar um fato natural a programa ideológico é tratar diferentemente quem se reconhece como
diferente. É o princípio do racismo. Invertido.
Infelizmente, o presidente francês Jacques Chirac não concorda.
Em novembro passado centenas
de carros foram queimados na
França por jovens "excluídos" e
com problemas de "auto-estima"?
Chirac encontrou a solução: oferecer às massas revoltosas um jornalista negro no principal noticiário do país. Na cabeça de Chirac, quando as massas revoltosas
assistirem à aparição de um âncora mais escuro na TV, elas irão
imediatamente sossegar os neurônios e apagar os isqueiros. E ficarão, em adoração mística, perante um exemplar da espécie. Será preciso comentar?
Preciso é: a fantasia da "affirmative action", que começou nos
Estados Unidos na década de
1970 e se espalhou como um vírus
por todo o mundo "civilizado",
apresenta dois problemas óbvios.
Existe um problema moral, que se
resume na pergunta simples: será
legítimo discriminar positivamente grupos inteiros quando,
evidentemente, não existem duas
pessoas iguais? As patrulhas acreditam que sim. Elas não estão dispostas a tratar uma pessoa como
pessoa, avaliando os seus méritos
e punindo os seus deméritos. Elas
preferem ignorar a individualidade de cada um, misturando tudo no mesmo saco ideológico.
Não existe mais o Antônio, o Pedro, o Luís. Existem os "negros".
Os "latinos". Os "índios". Os
"marcianos".
Trata-se de um pensamento totalitário. E totalitário no sentido
preciso do termo: olhamos para
as experiências utópicas que sacudiram o século 20 e encontramos essa mesma abolição do indivíduo pela exaltação da coletividade. Pela exaltação do partido,
da nação, da classe ou da raça. As
conseqüências são imediatas:
apagar a individualidade de um
ser humano é, no fundo, apagar
um ser humano. Isso já está acontecendo nos Estados Unidos: a
discriminação positiva em escolas
ou universidades acaba por alimentar no "discriminado" a sensação de que a vida, e os seus feitos, não lhe pertence por inteiro.
Pertence a um Estado invisível
que põe e dispõe da sua existência. Aliás, não apenas o "discriminado" se olha como um "inferior". A sociedade tende a olhá-lo
de igual maneira: como alguém
que subiu a montanha com as
pernas de terceiros.
Não admira que um problema
moral se converta num problema
prático: a "affirmative action",
valorizando a pele e desvalorizando a competência, acaba por
ser um contributo adicional para
mais pobreza e exclusão. Nenhum espanto: quando as universidades prescindem da excelência
e optam pela cor, elas estão a
atraiçoar gerações sucessivas de
estudantes que abandonam qualquer esforço individual porque
sabem que o esforço vale pouco
quando a pigmentação da pele
vale muito mais. Despreparadas e
ignaras, o mundo profissional
que as espera será implacável. A
menos, claro, que novos mecanismos de "discriminação positiva"
continuem a perpetuar es sa proteção artificial.
Um erro, claro. Ao contrário do
que se pensa, a melhoria substancial das condições dos negros nos
Estados Unidos não começou
com a "affirmative action" na década de 1970. Começou com o fim
da Segunda Guerra, ou seja, três
décadas antes. Existe aqui uma lição? Existe: só uma economia
competitiva e vibrante, como a
economia americana pós-1945,
permite uma melhoria generalizada das condições de vida.
Exatamente o contrário do que
sucede hoje em França: com um
Estado burocrático e irreformável, que afasta o investimento e
paralisa a economia, Chirac pode
pintar os jornalistas de azul, verde ou amarelo. Mas o futuro da
França, e até da Europa, será
mais negro que o novo âncora.
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