São Paulo, quarta-feira, 15 de março de 2006

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CARTAS DA EUROPA

Televisão em preto-e-branco

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Confesso: se a minha pele fosse ligeiramente mais escura, eu não gostaria de ter sobre mim o paternalismo das patrulhas. Discriminação positiva? Discriminação negativa? Não distingo. A cor da pele é a cor da pele. Elevar um fato natural a programa ideológico é tratar diferentemente quem se reconhece como diferente. É o princípio do racismo. Invertido.
Infelizmente, o presidente francês Jacques Chirac não concorda. Em novembro passado centenas de carros foram queimados na França por jovens "excluídos" e com problemas de "auto-estima"? Chirac encontrou a solução: oferecer às massas revoltosas um jornalista negro no principal noticiário do país. Na cabeça de Chirac, quando as massas revoltosas assistirem à aparição de um âncora mais escuro na TV, elas irão imediatamente sossegar os neurônios e apagar os isqueiros. E ficarão, em adoração mística, perante um exemplar da espécie. Será preciso comentar?
Preciso é: a fantasia da "affirmative action", que começou nos Estados Unidos na década de 1970 e se espalhou como um vírus por todo o mundo "civilizado", apresenta dois problemas óbvios. Existe um problema moral, que se resume na pergunta simples: será legítimo discriminar positivamente grupos inteiros quando, evidentemente, não existem duas pessoas iguais? As patrulhas acreditam que sim. Elas não estão dispostas a tratar uma pessoa como pessoa, avaliando os seus méritos e punindo os seus deméritos. Elas preferem ignorar a individualidade de cada um, misturando tudo no mesmo saco ideológico. Não existe mais o Antônio, o Pedro, o Luís. Existem os "negros". Os "latinos". Os "índios". Os "marcianos".
Trata-se de um pensamento totalitário. E totalitário no sentido preciso do termo: olhamos para as experiências utópicas que sacudiram o século 20 e encontramos essa mesma abolição do indivíduo pela exaltação da coletividade. Pela exaltação do partido, da nação, da classe ou da raça. As conseqüências são imediatas: apagar a individualidade de um ser humano é, no fundo, apagar um ser humano. Isso já está acontecendo nos Estados Unidos: a discriminação positiva em escolas ou universidades acaba por alimentar no "discriminado" a sensação de que a vida, e os seus feitos, não lhe pertence por inteiro. Pertence a um Estado invisível que põe e dispõe da sua existência. Aliás, não apenas o "discriminado" se olha como um "inferior". A sociedade tende a olhá-lo de igual maneira: como alguém que subiu a montanha com as pernas de terceiros.
Não admira que um problema moral se converta num problema prático: a "affirmative action", valorizando a pele e desvalorizando a competência, acaba por ser um contributo adicional para mais pobreza e exclusão. Nenhum espanto: quando as universidades prescindem da excelência e optam pela cor, elas estão a atraiçoar gerações sucessivas de estudantes que abandonam qualquer esforço individual porque sabem que o esforço vale pouco quando a pigmentação da pele vale muito mais. Despreparadas e ignaras, o mundo profissional que as espera será implacável. A menos, claro, que novos mecanismos de "discriminação positiva" continuem a perpetuar es sa proteção artificial.
Um erro, claro. Ao contrário do que se pensa, a melhoria substancial das condições dos negros nos Estados Unidos não começou com a "affirmative action" na década de 1970. Começou com o fim da Segunda Guerra, ou seja, três décadas antes. Existe aqui uma lição? Existe: só uma economia competitiva e vibrante, como a economia americana pós-1945, permite uma melhoria generalizada das condições de vida.
Exatamente o contrário do que sucede hoje em França: com um Estado burocrático e irreformável, que afasta o investimento e paralisa a economia, Chirac pode pintar os jornalistas de azul, verde ou amarelo. Mas o futuro da França, e até da Europa, será mais negro que o novo âncora.


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