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CONTARDO CALLIGARIS
Fama e narcisismo
Em uma "sociedade narcisista", a invisibilidade é mais intolerável que a prisão
NA CONVERSA leiga, "Fulano é
narcisista" significa que ele
adora se ver no espelho e
nunca pensa nos outros.
Na clínica, o sentido da expressão
é diferente: o traço dominante da
"personalidade narcisista" é a insegurança. Narcisista é quem está
sempre se questionando: "O que os
outros enxergam em mim? Será que
gostam do que vêem?".
Em ambos os casos, o narcisista se
preocupa com sua imagem. Mas, na
conversa leiga, ele seria apaixonado
por ela (como o Narciso do mito),
enquanto, segundo a clínica, ele seria dramaticamente atormentado
pelo sentimento de que sua imagem
depende do olhar dos outros.
De fato, a clínica tem razão: no espelho, enxergamos sempre e apenas
o que os outros vêem (ou o que imaginamos que eles vejam).
O mesmo mal-entendido aparece
quando a gente constata que vive
numa "sociedade narcisista".
Na conversa leiga, essa constatação soa como uma queixa moral: estaríamos vivendo no mundo do "cada um por si". A clínica sugere o contrário: numa sociedade narcisista,
cada um depende excessivamente
dos outros. Somos desprovidos de
essência: sou filho SE meus pais me
amam, sou pai SE meus filhos gostam de mim, sou psicanalista SE pacientes e colegas me reconhecem,
sou colunista SE você agüentou ler
até aqui. O espelho que nos define
não é o de Narciso, é o da bruxa de
Branca de Neve, um espelho que interrogamos, ansiosos.
Ora, recentemente, assisti, fascinado, ao processo de seleção da sexta temporada do programa "American Idol" (no canal Sony). É um programa parecido com "Fama", da
Globo de dois ou três anos atrás, e
com "Ídolos", do SBT. Trata-se de
descobrir novos cantores e cantoras.
O vencedor é eleito pelo público da
TV, mas o que me cativou foi a longa
fase inicial, em que os finalistas são
selecionados por um júri, entre milhares de jovens concorrentes.
Todos os candidatos parecem entusiasticamente certos de que serão
o futuro ídolo, mas a audição da
grandíssima maioria é propriamente constrangedora.
No mesmo canal, há outro programa parecido: "American Inventor",
em que desfilam inventores convencidos de que seu achado mudará o
mundo, mesmo que se trate da máquina acariciadora de cachorro para
dono preguiçoso (uma das invenções propostas).
O que leva milhares de sujeitos
a encarar uma espécie de humilhação pública?
Será que eles são narcisistas à moda da conversa leiga, enamorados de
si mesmos a ponto de perder toda
autocrítica? Por algum milagre do
amor materno, eles guardariam
uma imagem de si positiva e imperturbável: "Deixe o mundo falar, pois
eu fui, sou e sempre serei o ídolo da
minha mãe" (alguns concorrentes,
aliás, compareciam acompanhados
por uma mãe embevecida).
É possível. Mas, nas palavras de
muitos candidatos entrevistados,
aparecia outra coisa: uma vontade
dolorosa de despertar um olhar de
reconhecimento não só no público,
mas nos seus familiares, ausentes e
indiferentes. Era como se eles estivessem dispostos a qualquer coisa
para deixar, enfim, de ser invisíveis:
"Riam de mim, mas ao menos me
vejam". Pode parecer paradoxal que
alguém tente chamar a atenção (do
pai, da mãe, da irmã e do mundo) expondo-se ao ridículo e ao fracasso.
Mas, aparentemente, acontece que
escárnio e zombaria são um preço
aceitável por um (triste) momento
de fama.
Uma analogia talvez nos ajude a
entender. As estatísticas dizem que
há mais jovens que adultos delinqüentes. Justificação tradicional
(além da "testosterona" da adolescência): os jovens andam em grupo.
Portanto, é freqüente, no caso deles,
que haja mais de um réu por crime.
Certo. Mas também tudo indica que
os jovens delinqüentes são presos
mais facilmente que os adultos. Não
é imperícia: parece que, de uma certa forma, eles se deixam prender, como se seu gesto transgressor tivesse
como finalidade última o encontro
com a polícia e o juiz. Por quê?
Para a dramática insegurança do
narcisismo (aqui no sentido clínico),
uma condenação ou um fracasso humilhante apresentam uma vantagem parecida: ambos são preferíveis
ao silêncio do outro. Num mundo
em que a gente só existe pelo olhar
alheio, a invisibilidade é mais intolerável do que o escárnio ou a prisão.
PS.: Na semana retrasada, comentei o filme "Pecados Íntimos". Li,
nestes dias, o livro no qual ele se inspira, "Criancinhas", de Tom Perrotta (Objetiva): é tão tocante e forte
quanto o filme, se não mais.
ccalligari@uol.com.br
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