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Crítica/"Putas Assassinas"
Charme de obra de Bolaño se baseia na condição de fragilidade
Editado em 2001, livro de contos chega ao Brasil pela Companhia das Letras
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Possivelmente Roberto
Bolaño (1953-2003) seja o escritor latino-americano com prestígio crítico
mais crescente e maior potencial editorial, fenômenos que,
isolados, não acontecem todos
os dias, quanto mais conciliados entre si.
Não se pode descartar a suspeita, contudo, de que o prestígio se alimente também das notícias admirativas face à vida
desregrada que levou, na qual o
radicalismo político, apartidário e antiinstitucional se amplifica com experiências pessoais
excessivas, como o nomadismo, o uso de drogas, a freqüência da barra pesada, a atitude
rebelde e destemida, e, enfim, o
amor sincero à literatura.
Quer dizer, o imaginário do
"wild side", ou da "vida loca",
para usar uma imagem latina,
pode ter pesado na avaliação
muito positiva que a obra tem
recebido. A suspeita, que, no
fundo, insinua divergências irreparáveis entre obra e vida,
não faria sentido para Bolaño.
Em "Putas Assassinas", livro
de contos editado em 2001 e
lançado agora no Brasil, uma
das personagens diz: "A arte (...)
é parte da história particular
muito mais do que da história
da arte propriamente dita". E
arremata: "É a única história
particular possível". Não estranha, portanto, que os seus textos tenham um temperamento
jovem, capaz de imprimir a posições políticas um caráter surpreendentemente confessional, e as confissões mais pessoais, um tom de escolha e luta
políticas heróicas, ainda quando o herói se confesse frágil.
Talvez mais ainda aí: quando
a vontade ou a atitude do sujeito surge no interior da condição
da sua fragilidade. Para mim, é
esse o charme de Bolaño, com
toda a equivocidade do termo.
É certo que está longe de ser
um charme de ocasião. Há
grande domínio técnico em sua
narrativa, apoiada em diversas
alças da tradição que pareceriam inconciliáveis entre si: as
de viés mais especulativo e cerebral, como Poe e Borges; as de
tom mais atmosférico e opressivo, como Kafka ou Malcolm
Lowry; as de abandono às experiências da estrada e do sexo,
como os beatniks.
O êxito da mistura se deve,
sobretudo, ao cuidado da disposição, na qual seqüências de
ações casuais, anódinas, acabam se metendo em labirintos,
a seguir falas indiscerníveis,
linguagens de sonho, ameaças
veladas.
De repente, percebe-se que a
paisagem é de horror, na iminência tensa de um desastre.
A natureza do desastre é potencializada na injustiça e
crueldade da América Latina,
acumulada sobre um fundo primitivo de traição, dor e vingança. A violência contra mulheres, índios, velhos e crianças
são evidências da devastação
em curso, mas não é para os políticos que Bolaño aponta em
primeiro lugar o dedo acusador, e sim para a cumplicidade
que a literatura estabelece com
eles: a literatura dos poetas nacionalmente celebrados, cujo
serviço sujo seria disfarçar a
violência e o sofrimento em pitoresco latino-americano, gesto tanto mais imperdoável,
quanto se iguala ao de negação
de uma chance de vida real.
Por isso, imagina histórias de
amor e trepadas que duram até
o amanhecer com nomes e fotografias de poetas desaparecidos. Também desse ponto de
vista, o menino mapuche, sobrevivendo duramente na periferia, é a imagem exemplar do
poeta a se perder no deserto do
presente.
O que me suscita outras duas
observações: 1) mais do que
qualquer outro autor citado
com reverência por ele, "Putas
Assassinas" parece remeter a
Salinger, com o pesadelo de
crianças à beira do abismo; 2) a
iconoclastia de Bolaño está
sendo lançada nos mesmos dias
e na mesma editora que relança
Jorge Amado, o papa do pitoresco nacional.
O que Bolaño pensaria? Que
a iconoclastia faz correr sangue
fresco para velhos vampiros?
Que a ironia é a mais certeira
das figuras? Que a lucidez é
perpétuo desengano?
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da
Universidade Estadual de Campinas e autor de
"Máquina de Gêneros" (Edusp).
PUTAS ASSASSINAS
Autor: Roberto Bolaño
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38 (224 págs.)
Avaliação: ótimo
leia trecho do livro
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