São Paulo, sábado, 15 de março de 2008

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Crítica/"Putas Assassinas"

Charme de obra de Bolaño se baseia na condição de fragilidade

Editado em 2001, livro de contos chega ao Brasil pela Companhia das Letras

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Possivelmente Roberto Bolaño (1953-2003) seja o escritor latino-americano com prestígio crítico mais crescente e maior potencial editorial, fenômenos que, isolados, não acontecem todos os dias, quanto mais conciliados entre si.
Não se pode descartar a suspeita, contudo, de que o prestígio se alimente também das notícias admirativas face à vida desregrada que levou, na qual o radicalismo político, apartidário e antiinstitucional se amplifica com experiências pessoais excessivas, como o nomadismo, o uso de drogas, a freqüência da barra pesada, a atitude rebelde e destemida, e, enfim, o amor sincero à literatura.
Quer dizer, o imaginário do "wild side", ou da "vida loca", para usar uma imagem latina, pode ter pesado na avaliação muito positiva que a obra tem recebido. A suspeita, que, no fundo, insinua divergências irreparáveis entre obra e vida, não faria sentido para Bolaño.
Em "Putas Assassinas", livro de contos editado em 2001 e lançado agora no Brasil, uma das personagens diz: "A arte (...) é parte da história particular muito mais do que da história da arte propriamente dita". E arremata: "É a única história particular possível". Não estranha, portanto, que os seus textos tenham um temperamento jovem, capaz de imprimir a posições políticas um caráter surpreendentemente confessional, e as confissões mais pessoais, um tom de escolha e luta políticas heróicas, ainda quando o herói se confesse frágil.
Talvez mais ainda aí: quando a vontade ou a atitude do sujeito surge no interior da condição da sua fragilidade. Para mim, é esse o charme de Bolaño, com toda a equivocidade do termo.
É certo que está longe de ser um charme de ocasião. Há grande domínio técnico em sua narrativa, apoiada em diversas alças da tradição que pareceriam inconciliáveis entre si: as de viés mais especulativo e cerebral, como Poe e Borges; as de tom mais atmosférico e opressivo, como Kafka ou Malcolm Lowry; as de abandono às experiências da estrada e do sexo, como os beatniks.
O êxito da mistura se deve, sobretudo, ao cuidado da disposição, na qual seqüências de ações casuais, anódinas, acabam se metendo em labirintos, a seguir falas indiscerníveis, linguagens de sonho, ameaças veladas.
De repente, percebe-se que a paisagem é de horror, na iminência tensa de um desastre. A natureza do desastre é potencializada na injustiça e crueldade da América Latina, acumulada sobre um fundo primitivo de traição, dor e vingança. A violência contra mulheres, índios, velhos e crianças são evidências da devastação em curso, mas não é para os políticos que Bolaño aponta em primeiro lugar o dedo acusador, e sim para a cumplicidade que a literatura estabelece com eles: a literatura dos poetas nacionalmente celebrados, cujo serviço sujo seria disfarçar a violência e o sofrimento em pitoresco latino-americano, gesto tanto mais imperdoável, quanto se iguala ao de negação de uma chance de vida real.
Por isso, imagina histórias de amor e trepadas que duram até o amanhecer com nomes e fotografias de poetas desaparecidos. Também desse ponto de vista, o menino mapuche, sobrevivendo duramente na periferia, é a imagem exemplar do poeta a se perder no deserto do presente.
O que me suscita outras duas observações: 1) mais do que qualquer outro autor citado com reverência por ele, "Putas Assassinas" parece remeter a Salinger, com o pesadelo de crianças à beira do abismo; 2) a iconoclastia de Bolaño está sendo lançada nos mesmos dias e na mesma editora que relança Jorge Amado, o papa do pitoresco nacional.
O que Bolaño pensaria? Que a iconoclastia faz correr sangue fresco para velhos vampiros? Que a ironia é a mais certeira das figuras? Que a lucidez é perpétuo desengano?


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).

PUTAS ASSASSINAS
Autor:
Roberto Bolaño
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 38 (224 págs.)
Avaliação: ótimo

leia trecho do livro


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