São Paulo, domingo, 15 de março de 2009

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Mônica Bergamo

bergamo@folhasp.com.br

Aula de colagem

Luciana Whitaker/Folha Imagem
"Entrei na frente dele e disse: "Aqui dentro você não bate nela". E ele me perguntou: "Quer morrer?". Assumi o risco sozinha"
VIVIANE GRACE COSTA, 38,
professora de história

Professores da rede pública que trabalham em escolas de risco no Rio contam alguns de seus conflitos diários que vão além do giz, como tirar revólver de aluno e ter a bolsa furtada dentro da classe

"Professora, tem dois alunos armados e um diz que vai matar o outro no recreio." Foi assim que começou mais um dos centenas de dias de trabalho da professora de artes Vera Cruz, 66. "Tremi toda. Não sabia o que fazer. Respirei fundo e entrei no meio da briga. Era uma discussão por racismo. Um negro, outro branco. O alemão dizia que o negro não prestava, trocaram ofensas e colocaram a família no meio. Daí sentei com os dois, conversei e consegui fazê-los me entregar as armas: uma lâmina de sapateiro e uma adaga." Eles tinham dez anos.

 

A exposição à violência relatada por Vera foi o tema do filme "Verônica", sobre uma professora que dá aulas em uma escola que fica na favela, vivida por Andréa Beltrão. Depois de uma sessão do longa, no Rio, Vera, a atriz e mais uma dezena de outros professores da rede pública se reuniram para uma conversa com a coluna.
 

A psicóloga Simone de Carvalho, 45, trabalhou com uma sala de supletivo na região da praça Mauá, frequentada por prostitutas. Ela conta um episódio envolvendo um jovem de 20 anos. "Um dia, no meio da aula, me falaram que tinha um aluno com revólver dentro da classe. Fui até ele e expliquei que não poderia ficar com uma arma lá dentro, que poderia acabar machucando alguém. E ele me respondeu: "Professora, eu sei disso, mas eu tô jurado de morte, tenho que me defender"." Simone diz que viveu um "intenso conflito". "Eu deveria tirar a arma dele? E se o menino morresse, o que eu faria? Fiz um pacto de confiança para que ele não usasse aquela arma dentro da escola de modo algum." Ninguém saiu ferido.
 

As histórias se sucedem. Os docentes conseguem surpreender um ao outro, mesmo já tendo vivido tantas situações-limite. Há uma comoção, por exemplo, quando a professora primária Izabel Nobuko da Costa, 41, conta que foi furtada dentro da sala de aula. "Levaram minha carteira com meus cheques e cartões. Na bagunça entre as crianças, nem vi quando tiraram as coisas de dentro da minha bolsa." Andréa Beltrão interrompe: "Alunos de qual série?". "Da quarta, tinham mais ou menos uns dez anos", responde a professora.
 

A atriz surpreende os presentes quando revela uma atitude rara entre famílias de classe média: "Meus três filhos estudam em escola pública [o colégio Pedro 2º]". Ela diz confiar no padrão de ensino. Sua mãe foi diretora do estabelecimento. "A convivência plural faz muito bem para eles", diz ela.
 

Pluralismo que Luiz Elesbão Maciel, 43, professor de educação física e de filosofia, conhece bem. Ele já deu aulas em mais de 40 colégios e é o único do grupo que trabalhou em escolas dentro de presídios. "No meu primeiro dia, já teve confusão entre os presos. Um alarme tocou e eu só pedia para sair. "Sou professor, pelo amor de Deus, me deixa sair daqui!"
Eu tentando sair e os guardas de preto, com balas de borracha, entrando com aqueles escudos, sabe?" Com o tempo, Elesbão diz que se acostumou e que aprendeu as regras: cuidado para não levar nem trazer recados para presos; evitar assuntos que inflamem o ânimo dos alunos. Exemplo: "Jamais tocar em discussões de direitos e deveres básicos de cidadania, porque eles deveriam, por exemplo, receber a visita de defensores públicos, mas ninguém ia. Eu ficava revoltado".
 

Há alguns anos, em uma escola estadual na Tijuca, uma aluna grávida pediu socorro. ""Me ajuda, pelo amor de Deus, professora, me ajuda!" A menina estava desesperada porque o namorado queria espancá-la dentro da escola, conta Viviane Grace Costa, 38, professora de história. "Entrei na frente dele e disse: "Aqui dentro você não bate nela". E ele me perguntou: "Quer morrer?"." Viviane chamou a polícia, mas "os policiais não eram treinados para tratar dos direitos da mulher e falaram que não iam se meter. Assumi o risco sozinha."
 

Hoje, Viviane leciona na Rocinha. "Minha mãe morre de medo, mas há uma inversão de valores. Trabalho para o supletivo e são, na grande maioria, trabalhadores, que nos respeitam mais do que muito aluno de colégio particular."
 

Vera Cruz concorda. "Numa escola de alto padrão de Botafogo, os alunos jogavam papel, sentavam em cima das carteiras, gritavam, faziam de tudo para me agredir. Um dia foi tanta agressão que me deu na telha um novo método. Fui para o fundo da sala -aquilo era um horror!- e comecei a gritar igualzinho a eles.
"Aaaaaaahhhh!!!" Aí eles se olhavam: "Nossa, o que houve que a professora tá gritando?" E assim foram se aquietando.
Quando estava todo mundo quieto, parei de gritar. Fui para o quadro e comecei a aula."
 

Além do mau comportamento dos alunos, a discussão entre os professores engrena para "o nível e a qualidade do ensino", que, segundo Simone, "está caindo! Gente, a minha empregada doméstica tem diploma de professora. Uma vez, voltei da Europa e ela me perguntou: "Dona Simone, a França fica perto dos EUA?". Os professores no cinema riem com tristeza. E Simone engata uma história sobre rejeição.
 

"Foi com um aluno de 15 anos, negro, bem mais alto do que eu. Fui dar aula depois de ter tomado uma vacina bem doída. Daí ele chegou para falar comigo e botou a mão bem em cima do lugar dolorido. Eu dei um grito e o empurrei. Ele me olhou e disse: "Eu pensei que a senhora fosse diferente dos outros". Ele achou que minha reação tinha sido porque ele havia tocado em mim. E não adiantava eu me explicar. Ele me olhou com uma decepção, uma tristeza. Mais uma vez se sentiu rejeitado." O encontro termina em lágrimas.



"Tinha um aluno com revólver dentro da classe. Ele me disse: 'Eu tô jurado de morte'"
SIMONE DE CARVALHO, 45,
psicóloga e professora primária

"Tremi toda. Era uma discussão por racismo. Sentei com os dois, conversei e consegui fazê-los me entregar as armas: uma lâmina de sapateiro e uma adaga"
VERA CRUZ, 66,
professora de artes plásticas

"Levaram minha carteira com meus cheques e cartões. Na bagunça entre as crianças, nem vi quando tiraram as coisas de dentro da minha bolsa"
IZABEL NOBUKO DA COSTA, 41,
professora primária

Reportagem
Débora Bergamasco



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