|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MÚSICA
Guilherme de Brito põe seu sorriso no caminho
Caio Guatelli/Folha Imagem
|
O sambista carioca Guilherme de Brito, 78, parceiro de Nelson Cavaquinho e autor dos versos "tire seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com minha dor", posa no hotel antes de show em SP |
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local
Na quarta-feira à noite, o compositor de samba Guilherme de
Brito, 78, e sua mulher, Nena, 76,
viajaram de ônibus do Rio de Janeiro natal até São Paulo. Guilherme tinha duas apresentações
marcadas para o pequeno Villaggio Café, uma ontem e outra hoje.
A casa, de 70 lugares, não dispõe de infra-estrutura para dar
avião ou maiores regalias aos
sambistas tradicionais que teima
em mostrar a São Paulo -e quase toda a nata ainda viva do samba já passou por ali.
A infra-estrutura modesta, de
qualquer modo, faz parte dos hábitos de vida de Guilherme, compositor dos clássicos versos "tire
o seu sorriso do caminho/ que eu
quero passar com minha dor", do
samba "A Flor e o Espinho", dele
e do bem mais celebrado Nelson
Cavaquinho (1910-86).
Numa das parcerias douradas
da música popular brasileira, eles
compuseram juntos por mais de
30 anos, até Nelson morrer, sambas tristes como "Folhas Secas",
"Pranto de Poeta", "Depois da
Vida", "Quando Eu me Chamar
Saudade", "Meu Sofrer", "Erva
Daninha", "Luto", "Suicídio"...
A Folha entrevistou Guilherme
no hotel, sob observações e olhares atentos de Nena, e ouviu histórias que passaram por Noel Rosa e sambistas de aluguel e chegaram até as "bundinhas da garrafa", que talvez o autor admita como influenciadoras de seu samba
ainda inédito "A Vegetariana"
(leia letra nesta página). Fala,
Guilherme de Brito.
Folha - Quando você se tornou sambista?
Guilherme de Brito - Nasci em
Vila Isabel, na rua onde morava
Noel Rosa. Era garoto, mas conheci Noel, peguei carona no carro dele. Desde garoto vivi com o
cavaquinho na mão. Meu pai tocava violão, minha irmã também
-o compositor Synval Silva foi
professor dela. Tudo me levava
para esse lado. Vi-me com o cavaquinho na mão e um carvão no
bolso, porque também engano de
pintor. Minha tela preferida era a
calçada da vizinha, dona Carlota.
Nos meus 13 anos, meu pai
morreu. A situação ficou ruça lá
em casa, minha mãe disse que eu
tinha de trabalhar. Deixei o estudo e fui trabalhar como office-boy na Casa Edison, a primeira
casa de discos do Brasil e a mais
conhecida na ocasião. Vendia
discos, máquinas de escrever. Vicente Celestino e Baiano andavam por ali. Fui trabalhar lá, mas
tinha de ir de paletó e gravata e eu
não tinha terno nem gravata. Um
amigo deu uma calça, outro deu
um paletó, minha mãe recortou.
Devo ter ficado muito esquisito
naquela roupa, porque me sacanearam, disseram que minha calça parecia um balão. Fiz meu primeiro samba, "Calça-Balão", aos
14. Não me lembro mais como
era, nunca havia pensado em enveredar por esse caminho.
A Casa Edison foi meu primeiro
e único emprego. Entrei como office-boy e me aposentei como
chefe de seção das máquinas de
calcular. Nunca trabalhei na seção
de música. Nena não casou com
um músico, casou com um mecânico. São 55 anos de casados, minha primeira e única mulher.
Nena - Ah, sem graça...
Guilherme - Fui fazendo seresta
para namorada, fui cantar na rádio Vera Cruz. Um dia recebi uma
carta de uma dona de Belo Horizonte, uma fã. Levei o maior esporro da Nena, ela queria rasgar.
Escondi, mandei o retrato para a
dona, e ela escreveu que eu era
lindinho. Nunca conheci a mulher, e hoje a carta está no museu
que fizeram para mim no Conservatório do Rio. Foi a primeira e
única carta que recebi de fã na vida. Meu primeiro cachê na rádio
também guardei. Precisava, mas
não gastei. O amor à arte, sei lá...
Anotei a data na nota e guardei,
está no museu também.
Folha - E como foi o encontro
com Nelson Cavaquinho?
Guilherme - Eu pegava o trem
de manhã para ir trabalhar e via
aquele aglomerado na mesa do
botequim São Jorge. Era Nelson
Cavaquinho dando show com o
violão, de manhã já. Às vezes eu
voltava à noite, ainda estava o
Nelson lá. Um dia cheguei com a
primeira parte de um samba que
eu havia feito, "Garça", e perguntei se ele aproveitava. Gostou, fez
a segunda. Então viemos compondo, até que ele resolveu fazer
um trato de que eu só podia compor com ele. Nem eu podia compor com ninguém, nem ele. Tínhamos esse pacto, que viemos
seguindo até a morte dele. Eu tinha vontade de compor com Cartola e outros compositores, mas
não podia por causa do trato.
Nena - Você cumpriu. Ele, não.
Guilherme - Ele pulou a cerca
umas duas vezes. Não sei com
quem foi, uma foi em "Rei Vagabundo" (é creditada a Nelson e a
José Ribeiro). Sempre perdoei o
Nelson, porque ele ficava bebão e
fazia as dele. Em nossas parcerias,
se ele fizesse a primeira parte, deixava a segunda para mim, e vice-versa. Ou eu fazia a letra e ele a
melodia ou vice-versa. Eu fazia
mais letra, ultimamente ele não
fazia quase letras.
Folha - "A Flor e o Espinho",
por exemplo, como foi feita?
Guilherme - A primeira parte é
minha, "tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com
minha dor/ hoje pra você eu sou
espinho/ espinho não machuca a
flor/ eu só errei quando juntei minha alma à sua/ o Sol não pode viver perto da Lua", deixei para Nelson a segunda. Entendo que sempre pensem que é do Nelson... Já
tinha nome quando cheguei a ele.
Era um cara muito popular. Perto
dele eu era pequenininho. O outro cara, se chega perto, sofre.
Folha - Você sofreu?
Guilherme - Não sofri, porque
nunca me importei. Sempre fui
despido dessa vaidade. Uma vez
fiz a segunda de um samba, "Pecado": "Vá, antes que o Sol transforme em pedra/ o lamaçal que
trouxeste para dentro do meu
lar". Quando foi um dia, vi no jornal que era dele e de outro compositor. Não consto como autor.
Botou uma mulher que ele tinha.
Reclamei, e ele: "Não, eu estava
bêbado". A Censura proibiu a
música, para castigo deles. Mas
foi a única vez. Também não levei
nenhuma mágoa. O cara já morreu e, mesmo que não tivesse
morrido, eu não admitiria que falassem mal perto de mim.
Folha - Mas você foi menos reconhecido do que merecia?
Guilherme - Acho que sim. Mas
também compreendo isso. Um
cara desses, quando tem um nome, quem chega perto dele fica lá
embaixo. Nelson dizia que a música era dele, só quando ia a um
programa de televisão, que sabia
que eu podia ver, é que me citava.
Folha - "A Flor e o Espinho"
tem também Alcides Caminha
na parceria. O que ele fez?
Guilherme - Deu três contos de
réis para entrar. Alcides Caminha
fazia aquela revista de sacanagem,
ele era o Carlos Zéfiro. Havia as
músicas de Nelson em que os caras entravam. Nelson estava duro
e tinha seus fregueses. Eu, não,
nunca vendi para ninguém. Tenho amor àquilo que faço. Mas os
caras que entraram na nossa parceria foi Nelson quem colocou.
Quando tem alguém a mais fora
eu e Nelson, esse cara entrou. Botou em "Luto", "Tatuagem"...
Folha - Como foi feita "Folhas
Secas"?
Guilherme - Havia um bar na
praça Tiradentes que era de péssima reputação, onde entravam
mendigos, pés-de-cana, prostitutas de última classe. Havia vários
bares, a Leiteria, mas era ali que
podíamos ir. Acho que nem tinha
nome, mas era conhecido como
Cabaré dos Bandidos. A barra era
pesada ali. Íamos tomar cerveja
preta, eu pagava. Ele estava sempre 100% duro. Assim fizemos
muitas músicas juntos. Nelson fazia um pedaço, eu fazia outro.
Folha - Você vive de direitos
autorais e da aposentadoria?
Guilherme - Sou também do
conselho fiscal da União Brasileira de Compositores e faço esses
shows. Para mim e para minha
mulher, o que ganho está dando
bem. Tenho uma vida modesta.
Queria sair do apartamento que
tenho, porque é no terceiro andar
de escada e para descer e subir todo dia está pesando. Mas o que
vou fazer? O que ganho está bom.
Tenho meus quadros que vendia,
mas agora decidi que não vou
mais vender. Tenho amizade aos
quadros que pinto. É assim mesmo. Nelson também não ficou rico, nem Cartola. Dizem que os
cantores da bossa nova ganham
R$ 40 mil por mês de direito autoral, eu ganho cento e poucos.
Folha - Qual é sua opinião musical sobre a bossa nova?
Guilherme - Ah, é um gênero
como outro qualquer. Tem quem
goste. Sinceramente não gosto,
nunca me interessei. Bossa nova
era do túnel para lá. Nós éramos
para cá. O samba tradicional não
vai mudar nunca. Sofisticam, fazem bossa, pagode, mas o samba
não vai morrer nunca. Bundinha
da garrafa eu não faço.
Nena - Não fala, não, que você
tem "A Vegetariana".
Guilherme - Foi a única que fiz.
A letra está cheia de malícia, mas
você pode cantar onde for (ele
canta o samba; leia a letra acima).
De tanto falarem de bundinha da
garrafa, não sei se acabei fazendo
um troço assim. Mas tem classe,
não tem?
Folha -Você já compôs algum
samba em 2000?
Guilherme - Ainda não... Quer
ver como é meu dia? Levanto às
8h, desço a escada e vou ao supermercado. É o melhor passeio da
minha vida. Garoto ainda, a situação ruim lá em casa, eu estava
com fome, e minha mãe fazendo
bolinho de milho. "Ah, meu filho,
come um bolinho que já vai sair o
almoço." Hoje eu sei que não tinha almoço. Acho que é por isso
que vou todo dia ao supermercado. É uma felicidade para mim,
sabe? Volto e tomo aquele café reforçado. Como melancia, salsicha, queijo frito, suco de laranja,
pão com manteiga, café. Leio
aquela fofoca toda do jornal, assisto ao jornal da TV, almoço, tomo uma caneca de vinho.
Nena - Aí acabou o Guilherme.
Vai para a cama e só acorda às 18h
para ver o "Cidade Alerta".
Guilherme - Vejo o Boris Casoy, "Ratinho" e cama de novo.
Folha - Ou seja, não sobra
tempo para compor?
Guilherme - Não sobra.
Folha - Depois que Nelson
morreu, você foi compor só?
Guilherme - Ter um parceiro é
bom. Acostumei-me com os parceiros. Quando ele morreu, se
aproximaram outros compositores, Alcyr Pires Vermelho, Tito
Madi, Monarco, Nelson Sargento,
Evaldo Gouveia, Fagner... A primeira música que gravei quem
cantou foi Augusto Calheiros,
"Meu Dilema" (54). No começo
era difícil, eu andava nesse meio e
não conseguia gravar, que é o sonho de todo autor. Ademilde
Fonseca e Roberto Silva cantavam meus sambas, mas não gravavam. Havia muitos compositores, um forasteiro como eu não
conseguia nada. Era um corpo estranho no meio deles. Havia Pedro Caetano, Benedito Lacerda,
Ary Barroso, Braguinha. Os discos só tinham duas músicas, era
difícil entrar naquele meio.
Folha - Por que seus sambas
com Nelson eram tão tristes?
Guilherme -Nelson era um cara
triste. Dificilmente ria. Convivi
com ele quase 40 anos, sempre sisudo. Aprendi isso com ele, acho
que a tristeza marca mais do que
a alegria. Não sei fazer música alegre, essa "A Vegetariana" é uma
exceção. Fiz um soneto para Nena quando começamos a namorar, já era triste. Ela era pobre.
Nena - Eu sou pobre ainda.
Guilherme - Você se sente pobre porque é muito ambiciosa (risos). Isso não vale nada. Um momento triste foi quando briguei
com um sujeito no trabalho e fomos os dois para a rua. Aos 20
anos, fiquei desempregado, escrevi um soneto (ele recita, e Nena recita os versos com ele, mas
sem emitir som; leia abaixo o
poema). Eu estava a perigo, ela estava pior do que eu, lavava roupa.
Juntamos a fome com a vontade
de comer.
Folha - Sendo parceiro de Nelson, ele deu muito trabalho
com bebida?
Guilherme - (Nena se cala.) Eu
bebia bem, mas nunca perdi a linha, não. Nunca cambaleei.
Show: Guilherme de Brito
Onde: Villaggio Café (pça. D. Orione,
298, Bela Vista, tel. 0/xx/11/251-3730)
Quando: hoje, às 23h
Quanto: R$ 15
Texto Anterior: Amazonas monta íntegra de "O Guarani" Próximo Texto: Hoje Índice
|