São Paulo, sábado, 15 de abril de 2000


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MÚSICA
Guilherme de Brito põe seu sorriso no caminho

Caio Guatelli/Folha Imagem
O sambista carioca Guilherme de Brito, 78, parceiro de Nelson Cavaquinho e autor dos versos "tire seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com minha dor", posa no hotel antes de show em SP


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Na quarta-feira à noite, o compositor de samba Guilherme de Brito, 78, e sua mulher, Nena, 76, viajaram de ônibus do Rio de Janeiro natal até São Paulo. Guilherme tinha duas apresentações marcadas para o pequeno Villaggio Café, uma ontem e outra hoje.
A casa, de 70 lugares, não dispõe de infra-estrutura para dar avião ou maiores regalias aos sambistas tradicionais que teima em mostrar a São Paulo -e quase toda a nata ainda viva do samba já passou por ali.
A infra-estrutura modesta, de qualquer modo, faz parte dos hábitos de vida de Guilherme, compositor dos clássicos versos "tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com minha dor", do samba "A Flor e o Espinho", dele e do bem mais celebrado Nelson Cavaquinho (1910-86).
Numa das parcerias douradas da música popular brasileira, eles compuseram juntos por mais de 30 anos, até Nelson morrer, sambas tristes como "Folhas Secas", "Pranto de Poeta", "Depois da Vida", "Quando Eu me Chamar Saudade", "Meu Sofrer", "Erva Daninha", "Luto", "Suicídio"...
A Folha entrevistou Guilherme no hotel, sob observações e olhares atentos de Nena, e ouviu histórias que passaram por Noel Rosa e sambistas de aluguel e chegaram até as "bundinhas da garrafa", que talvez o autor admita como influenciadoras de seu samba ainda inédito "A Vegetariana" (leia letra nesta página). Fala, Guilherme de Brito.

Folha - Quando você se tornou sambista?
Guilherme de Brito -
Nasci em Vila Isabel, na rua onde morava Noel Rosa. Era garoto, mas conheci Noel, peguei carona no carro dele. Desde garoto vivi com o cavaquinho na mão. Meu pai tocava violão, minha irmã também -o compositor Synval Silva foi professor dela. Tudo me levava para esse lado. Vi-me com o cavaquinho na mão e um carvão no bolso, porque também engano de pintor. Minha tela preferida era a calçada da vizinha, dona Carlota.
Nos meus 13 anos, meu pai morreu. A situação ficou ruça lá em casa, minha mãe disse que eu tinha de trabalhar. Deixei o estudo e fui trabalhar como office-boy na Casa Edison, a primeira casa de discos do Brasil e a mais conhecida na ocasião. Vendia discos, máquinas de escrever. Vicente Celestino e Baiano andavam por ali. Fui trabalhar lá, mas tinha de ir de paletó e gravata e eu não tinha terno nem gravata. Um amigo deu uma calça, outro deu um paletó, minha mãe recortou. Devo ter ficado muito esquisito naquela roupa, porque me sacanearam, disseram que minha calça parecia um balão. Fiz meu primeiro samba, "Calça-Balão", aos 14. Não me lembro mais como era, nunca havia pensado em enveredar por esse caminho.
A Casa Edison foi meu primeiro e único emprego. Entrei como office-boy e me aposentei como chefe de seção das máquinas de calcular. Nunca trabalhei na seção de música. Nena não casou com um músico, casou com um mecânico. São 55 anos de casados, minha primeira e única mulher.

Nena - Ah, sem graça...

Guilherme - Fui fazendo seresta para namorada, fui cantar na rádio Vera Cruz. Um dia recebi uma carta de uma dona de Belo Horizonte, uma fã. Levei o maior esporro da Nena, ela queria rasgar. Escondi, mandei o retrato para a dona, e ela escreveu que eu era lindinho. Nunca conheci a mulher, e hoje a carta está no museu que fizeram para mim no Conservatório do Rio. Foi a primeira e única carta que recebi de fã na vida. Meu primeiro cachê na rádio também guardei. Precisava, mas não gastei. O amor à arte, sei lá... Anotei a data na nota e guardei, está no museu também.

Folha - E como foi o encontro com Nelson Cavaquinho?
Guilherme -
Eu pegava o trem de manhã para ir trabalhar e via aquele aglomerado na mesa do botequim São Jorge. Era Nelson Cavaquinho dando show com o violão, de manhã já. Às vezes eu voltava à noite, ainda estava o Nelson lá. Um dia cheguei com a primeira parte de um samba que eu havia feito, "Garça", e perguntei se ele aproveitava. Gostou, fez a segunda. Então viemos compondo, até que ele resolveu fazer um trato de que eu só podia compor com ele. Nem eu podia compor com ninguém, nem ele. Tínhamos esse pacto, que viemos seguindo até a morte dele. Eu tinha vontade de compor com Cartola e outros compositores, mas não podia por causa do trato.

Nena - Você cumpriu. Ele, não.

Guilherme - Ele pulou a cerca umas duas vezes. Não sei com quem foi, uma foi em "Rei Vagabundo" (é creditada a Nelson e a José Ribeiro). Sempre perdoei o Nelson, porque ele ficava bebão e fazia as dele. Em nossas parcerias, se ele fizesse a primeira parte, deixava a segunda para mim, e vice-versa. Ou eu fazia a letra e ele a melodia ou vice-versa. Eu fazia mais letra, ultimamente ele não fazia quase letras.

Folha - "A Flor e o Espinho", por exemplo, como foi feita?
Guilherme -
A primeira parte é minha, "tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com minha dor/ hoje pra você eu sou espinho/ espinho não machuca a flor/ eu só errei quando juntei minha alma à sua/ o Sol não pode viver perto da Lua", deixei para Nelson a segunda. Entendo que sempre pensem que é do Nelson... Já tinha nome quando cheguei a ele. Era um cara muito popular. Perto dele eu era pequenininho. O outro cara, se chega perto, sofre.

Folha - Você sofreu?
Guilherme -
Não sofri, porque nunca me importei. Sempre fui despido dessa vaidade. Uma vez fiz a segunda de um samba, "Pecado": "Vá, antes que o Sol transforme em pedra/ o lamaçal que trouxeste para dentro do meu lar". Quando foi um dia, vi no jornal que era dele e de outro compositor. Não consto como autor. Botou uma mulher que ele tinha. Reclamei, e ele: "Não, eu estava bêbado". A Censura proibiu a música, para castigo deles. Mas foi a única vez. Também não levei nenhuma mágoa. O cara já morreu e, mesmo que não tivesse morrido, eu não admitiria que falassem mal perto de mim.

Folha - Mas você foi menos reconhecido do que merecia?
Guilherme -
Acho que sim. Mas também compreendo isso. Um cara desses, quando tem um nome, quem chega perto dele fica lá embaixo. Nelson dizia que a música era dele, só quando ia a um programa de televisão, que sabia que eu podia ver, é que me citava.

Folha - "A Flor e o Espinho" tem também Alcides Caminha na parceria. O que ele fez?
Guilherme -
Deu três contos de réis para entrar. Alcides Caminha fazia aquela revista de sacanagem, ele era o Carlos Zéfiro. Havia as músicas de Nelson em que os caras entravam. Nelson estava duro e tinha seus fregueses. Eu, não, nunca vendi para ninguém. Tenho amor àquilo que faço. Mas os caras que entraram na nossa parceria foi Nelson quem colocou. Quando tem alguém a mais fora eu e Nelson, esse cara entrou. Botou em "Luto", "Tatuagem"...

Folha - Como foi feita "Folhas Secas"?
Guilherme -
Havia um bar na praça Tiradentes que era de péssima reputação, onde entravam mendigos, pés-de-cana, prostitutas de última classe. Havia vários bares, a Leiteria, mas era ali que podíamos ir. Acho que nem tinha nome, mas era conhecido como Cabaré dos Bandidos. A barra era pesada ali. Íamos tomar cerveja preta, eu pagava. Ele estava sempre 100% duro. Assim fizemos muitas músicas juntos. Nelson fazia um pedaço, eu fazia outro.

Folha - Você vive de direitos autorais e da aposentadoria?
Guilherme -
Sou também do conselho fiscal da União Brasileira de Compositores e faço esses shows. Para mim e para minha mulher, o que ganho está dando bem. Tenho uma vida modesta. Queria sair do apartamento que tenho, porque é no terceiro andar de escada e para descer e subir todo dia está pesando. Mas o que vou fazer? O que ganho está bom. Tenho meus quadros que vendia, mas agora decidi que não vou mais vender. Tenho amizade aos quadros que pinto. É assim mesmo. Nelson também não ficou rico, nem Cartola. Dizem que os cantores da bossa nova ganham R$ 40 mil por mês de direito autoral, eu ganho cento e poucos.

Folha - Qual é sua opinião musical sobre a bossa nova?
Guilherme -
Ah, é um gênero como outro qualquer. Tem quem goste. Sinceramente não gosto, nunca me interessei. Bossa nova era do túnel para lá. Nós éramos para cá. O samba tradicional não vai mudar nunca. Sofisticam, fazem bossa, pagode, mas o samba não vai morrer nunca. Bundinha da garrafa eu não faço.

Nena - Não fala, não, que você tem "A Vegetariana".
Guilherme -
Foi a única que fiz. A letra está cheia de malícia, mas você pode cantar onde for (ele canta o samba; leia a letra acima). De tanto falarem de bundinha da garrafa, não sei se acabei fazendo um troço assim. Mas tem classe, não tem?

Folha -Você já compôs algum samba em 2000?
Guilherme -
Ainda não... Quer ver como é meu dia? Levanto às 8h, desço a escada e vou ao supermercado. É o melhor passeio da minha vida. Garoto ainda, a situação ruim lá em casa, eu estava com fome, e minha mãe fazendo bolinho de milho. "Ah, meu filho, come um bolinho que já vai sair o almoço." Hoje eu sei que não tinha almoço. Acho que é por isso que vou todo dia ao supermercado. É uma felicidade para mim, sabe? Volto e tomo aquele café reforçado. Como melancia, salsicha, queijo frito, suco de laranja, pão com manteiga, café. Leio aquela fofoca toda do jornal, assisto ao jornal da TV, almoço, tomo uma caneca de vinho.

Nena - Aí acabou o Guilherme. Vai para a cama e só acorda às 18h para ver o "Cidade Alerta".

Guilherme - Vejo o Boris Casoy, "Ratinho" e cama de novo.

Folha - Ou seja, não sobra tempo para compor?
Guilherme -
Não sobra.

Folha - Depois que Nelson morreu, você foi compor só?
Guilherme -
Ter um parceiro é bom. Acostumei-me com os parceiros. Quando ele morreu, se aproximaram outros compositores, Alcyr Pires Vermelho, Tito Madi, Monarco, Nelson Sargento, Evaldo Gouveia, Fagner... A primeira música que gravei quem cantou foi Augusto Calheiros, "Meu Dilema" (54). No começo era difícil, eu andava nesse meio e não conseguia gravar, que é o sonho de todo autor. Ademilde Fonseca e Roberto Silva cantavam meus sambas, mas não gravavam. Havia muitos compositores, um forasteiro como eu não conseguia nada. Era um corpo estranho no meio deles. Havia Pedro Caetano, Benedito Lacerda, Ary Barroso, Braguinha. Os discos só tinham duas músicas, era difícil entrar naquele meio.

Folha - Por que seus sambas com Nelson eram tão tristes?
Guilherme -
Nelson era um cara triste. Dificilmente ria. Convivi com ele quase 40 anos, sempre sisudo. Aprendi isso com ele, acho que a tristeza marca mais do que a alegria. Não sei fazer música alegre, essa "A Vegetariana" é uma exceção. Fiz um soneto para Nena quando começamos a namorar, já era triste. Ela era pobre.

Nena - Eu sou pobre ainda.

Guilherme - Você se sente pobre porque é muito ambiciosa (risos). Isso não vale nada. Um momento triste foi quando briguei com um sujeito no trabalho e fomos os dois para a rua. Aos 20 anos, fiquei desempregado, escrevi um soneto (ele recita, e Nena recita os versos com ele, mas sem emitir som; leia abaixo o poema). Eu estava a perigo, ela estava pior do que eu, lavava roupa. Juntamos a fome com a vontade de comer.

Folha - Sendo parceiro de Nelson, ele deu muito trabalho com bebida?
Guilherme -
(Nena se cala.) Eu bebia bem, mas nunca perdi a linha, não. Nunca cambaleei.



Show: Guilherme de Brito Onde: Villaggio Café (pça. D. Orione, 298, Bela Vista, tel. 0/xx/11/251-3730) Quando: hoje, às 23h Quanto: R$ 15


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