São Paulo, sábado, 15 de abril de 2006

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DRAUZIO VARELLA

Genomas a preços módicos

Descubra os segredos de sua herança genética por R$ 2.000; serviço rápido e confidencial. Arrisco dizer que em menos de dez anos você, leitor incrédulo, verá um comercial como este.
Em 1985, num congresso na cidade de Washington, assisti a um debate sobre um grande projeto a ser lançado em 1990, com a inacreditável intenção de mapear e seqüenciar todos os genes humanos num período de 15 anos, ao custo de US$ 3 bilhões: o Projeto Genoma.
A discussão foi acalorada: os defensores afirmavam que o conhecimento da estrutura dos 100 mil genes humanos (número suposto na época) representaria um passo gigantesco em direção ao entendimento e à cura do câncer, de doenças genéticas e neurológicas e de muitas outras; os detratores questionavam alguns dos possíveis benefícios, duvidavam que 15 anos fossem suficientes para a empreitada e que as despesas ficassem restritas aos US$ 3 bilhões.
Havia razões de sobra para críticas. Os autores do projeto admitiam que essa quantia seria insuficiente com a tecnologia disponível naqueles dias, mas que a estimativa se tornaria razoável se fossem contados os avanços científicos dos anos vindouros.
Dois anos antes do prazo previsto, o Projeto Genoma chegou ao fim. Ficamos sabendo como estão ordenados em nossos cromossomos os 30 mil genes (em vez dos 100 mil imaginados) responsáveis pela condição humana, a um custo que se aproximou dos US$ 3 bilhões.
No mês passado, um grupo de cientistas completou o rascunho do seqüenciamento genético do segundo primata não-humano (o primeiro a ter seus genes conhecidos foi o chimpanzé, nosso parente mais próximo): o macaco rhesus. Com um número de genes igual ao nosso, o custo do genoma do rhesus foi de US$ 22 milhões: 150 vezes mais barato do que o humano.
Uma companhia americana anuncia para o final do corrente ano o seqüenciamento do genoma de um mamífero por US$ 100 mil, quantia que representa uma redução de custo de 3.000 vezes em relação ao Projeto Genoma original; economia obtida em apenas seis anos.
Como não existem princípios físicos ou biológicos que impeçam o desenvolvimento de seqüenciadores automáticos, capazes de realizar a mesma tarefa por muito menos, o National Institute of Health, dos Estados Unidos, lançou em 2004 um programa de US$ 70 milhões para financiar e dar suporte aos interessados em desenvolver métodos para seqüenciar o genoma de um mamífero a um custo total de US$ 1.000.
O resultado foi a criação de um grande número de companhias de biotecnologia que competem por esses recursos e pelos futuros royalties oriundos de suas possíveis descobertas.
Se, em seis anos, o seqüenciamento de um genoma de mamífero que custava US$ 3 bilhões caiu para US$ 100 mil (3.000 vezes menos), por que a competição não poderá fazê-lo cair mais cem vezes e atingir os US$ 1.000 nos próximos dez anos?
Quando isso acontecer, sairei correndo para seqüenciar meus genes. Quero saber se estou predisposto a apresentar algum tipo de câncer ou de doença cardiovascular, de modo que possa fazer exames preventivos, praticar mais exercícios ou o que for necessário para não ser surpreendido quando já for tarde.
Ainda que meus genes indiquem a chegada de uma degeneração neurológica inexorável, prefiro saber. Se daqui a cinco anos poderei ter esquecido quem sou, preciso organizar meus dias enquanto ainda me reconheço.
E, se porventura for portador de genes deletérios, eventualmente transmitidos a meus descendentes, quero avisá-los do perigo que correm para que possam defender-se ou estar preparados para enfrentá-los quando chegar a hora.
Identificar os genes humanos a preço acessível criará condições para o surgimento de uma medicina preventiva individualizada. A análise dos genes herdados pelo bebê permitirá aos pais orientar seus filhos para adotar estilos de vida que lhes permitam reduzir o risco de ficarem doentes e a tomar medidas preventivas com a finalidade de diagnosticar precocemente as patologias que não puderem ser evitadas.
Como a propriedade mais importante dos genomas é a plasticidade, porque a estrutura dos genes se altera ao interagir com o ambiente, mapeá-los e seqüenciá-los em várias fases da vida para identificar as modificações sofridas será de grande utilidade. Análises comparativas desse tipo permitirão, por exemplo, individualizar os fumantes que correm risco de desenvolver câncer ou enfisema, os diabéticos que têm probabilidade alta de sofrer derrame cerebral, as mulheres e homens de 50 anos que poderão apresentar doenças neurodegenerativas antes dos 60 anos.
Comparada com essa medicina preventiva baseada na genômica, a que praticamos hoje ficará arcaica; servirá apenas para dar orientações genéricas para grandes populações: abandonar a vida sedentária, evitar a obesidade, medir periodicamente a pressão arterial, largar do cigarro.
Talvez você, leitor, ache que, ao correr atrás do seqüenciamento de meus genes com o objetivo de sofrer menos e viver mais, estarei sendo ridículo porque não é possível controlar todas as variáveis: poderei ser atropelado em frente ao laboratório no dia em que for apanhar os resultados.
Tem razão, vou tomar o cuidado de acessá-los pela internet.


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