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FERREIRA GULLAR
Cartas anônimas
Uma carta com letras recortadas de jornal dizia o seguinte: "Sua mulher o está traindo"
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CASADO HÁ mais de 30 anos
com Maria Eugênia, Geninha, como ele a chamava,
Deodato, aposentado, vivia sem
grandes júbilos mas também sem
sobressaltos. Aliás, se sobressaltos
havia, eram provocados por seu filho Benício que, não sabia por que,
às vezes começava a resmungar pelos cantos e a implicar com a mãe,
que sempre o tratou com o carinho
dispensado aos filhos únicos.
Essa implicância se agravou depois que ele rompeu o namoro com
Alice, sua colega na procuradoria da
prefeitura. A moça nunca entendeu
o que o levara àquela decisão, uma
vez que, semanas antes, falara em
casar-se com ela. Rompeu de maneira intempestiva e drástica, chegando mesmo, certa noite, a expulsá-la
de sua casa quando, ao voltar do trabalho, encontrou-a conversando
com dona Geninha, na sala. A atitude, demasiado grosseira, provocou a
reação de Deodato que, atraído pelos berros do filho, veio até a sala e o
repreendeu. A reação de Benício foi
mais violenta ainda, desta vez contra o pai, que ele agarrou pelo pescoço, ameaçando estrangulá-lo. No dia seguinte, Benício pediu desculpas ao
pai e se manteve, desde então, relativamente calmo, ainda que às vezes
voltasse a resmungar para a apreensão dos pais.
Fora esses problemas, a vida de
Deodato transcorria em paz, uma
vez que ele e a mulher se entendiam
muito bem. Ela às vezes saía para visitar uma antiga amiga de colégio,
outras vezes era ele que ia até o boteco do Dimas, ali na esquina, jogar
um carteado.
Foi assim que, com espanto, leu a
carta que encontrou, sob a porta da
rua, endereçada a ele. Uma carta
anônima que, com letras recortadas
de jornal, dizia o seguinte: "Sua mulher o está traindo".
Dobrou o envelope e meteu-o no
bolso, sem saber o que pensar. À mesa do café, Geninha percebeu alguma coisa estranha nele e perguntou
se havia acontecido alguma coisa.
Ele respondeu que não, não havia
acontecido nada e, mal terminou o
café, saiu para a rua.
Sentado num banco da pracinha
que ficava a uma quadra de sua casa,
releu a carta anônima. Estava certo
de que se tratava de uma calúnia, já
que tinha total confiança em Geninha que, se fora namoradeira quando jovem, tornara-se um exemplo
de esposa após o casamento. Mas
quem teria lhe enviado aquela carta
e com que objetivo? Pensou um instante e decidiu rasgá-la para evitar
que a mulher tomasse conhecimento daquilo.
Passaram-se alguns dias, ele já
nem mais pensava no assunto,
quando outra carta apareceu debaixo da porta: "Não se iluda, ela está
traindo você". Deodato, desta vez,
sentiu-se realmente abalado pela
denúncia. Não que lhe desse crédito,
mas a insistência do acusador passou a preocupá-lo. Que diabo levaria
uma pessoa desconhecida a incriminar-lhe a esposa, que ele sabia fiel e
honesta? Seria produto de simples
equívoco ou a perversidade de alguém? Não tinha resposta para essas perguntas e, então, chegou a
pensar que a causa fossem as visitas
de Geninha a tal amiga de colégio.
Podia ser que alguém, vendo-a entrar com alguma freqüência naquele
prédio, talvez supusesse que fosse
encontrar-se com algum homem,
um amante... Não, aquilo não tinha
cabimento, disse Deodato a si mesmo, depois de rasgar a segunda carta
anônima e jogá-la na privada.
A verdade, porém, é que, quando a
terceira carta apareceu debaixo da
porta, teve ímpeto de mostrá-la à esposa e pedir-lhe explicações. "Alguma razão deveria haver para que
uma pessoa se desse ao trabalho de
mandar-me essas denúncias", pensou ele, atormentado. Não quis sentar-se à mesa do café da manhã com
a mulher, alegando não ter fome,
vestiu o paletó e saiu, sem dar explicações.
Ficou rodando pelas ruas, sem saber o que fazer para acabar com
aquele tormento. Nem podia pedir
conselho a algum amigo, pois levantaria suspeitas contra a respeitabilidade da esposa. Não voltou para almoçar, o que levou Geninha a telefonar para o trabalho do filho e perguntar se sabia do pai. Apareceu para o jantar, mas não pronunciou
uma só palavra. Benício e a mãe se
entreolhavam, sem entender. Após
o jantar, trancou-se no escritório e
ali dormiu, sentado na poltrona.
Quando despertou, o filho saía para
o trabalho. Assim que ele transpôs a
porta da rua, foi espiar pela janela e o
viu parado, mexendo na pasta que
sempre levava consigo. Dela tirou
um envelope e, após reparar que
ninguém o observava, colocou-o
cuidadosamente debaixo da porta,
que acabara de transpor. Em seguida, fechou a pasta e dirigiu-se calmamente para o ponto de ônibus.
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