São Paulo, quarta, 15 de abril de 1998

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Para onde foi a vida toda?

LUIZ PAULO BARAVELLI
especial para a Folha

(You can get no.)
Tenho 55 anos e traduzo, de Philip Larkin, o poema "A Vista", um tanto literalmente:
"A vista é bonita, desde os cinquenta,
dizem alpinistas experientes;
Assim, acima do peso e inquieto
me volto para ver
o caminho até hoje.
Em vez de campos épicos
e veredas floridas que serpeiam,
o caminho se parte sob meus dedões
e desaparece em nevoeiro.
A vista não existe.
Para onde foi, a vida toda?
pode me revistar. O que sobra é chatura.
Desfilhado e desesposado, posso
ver isso bem claro:
tão final. E tão perto".
O que eles fazem é música, portanto arte. Ou a arte é uma entidade à parte da vida ou é uma intensificação e uma clarificação legível das correntes subjacentes à vida real. Os Rolling Stones e os Beatles. Desde o início os sinais eram em direções opostas. Os Rolling Stones optaram por este olhar para o que é à parte, endereçaram seu trabalho para a criação de um espaço vazio. Segunda-feira passada, apesar do barulho e dos empurrões, houve uma extraordinária produção de silêncio. Do que se trata aquele ritual? para que foi todo mundo lá? As pessoas tem uma vida tão cheia de coisas, os dias tão lotados que precisam desse silêncio conceitual. "Não dava para ver nada e ninguém sabia as letras; todo mundo só sabia o refrão que diz que não se vai ter satisfação", como observou meu filho de 18 anos - um resumo muito bom. Todos foram lá justamente para isso; para um dia poderem se perguntar: "Para onde foi, a vida toda?"
Nos Beatles havia satisfação e acabou; houve um flash de coisidade, aquilo era virado para a vida real e impossível de manter.
Falamos neles com o mesmo olhar distante com que falamos em Schubert, românticos e ingênuos, cada vez mais parecidos, com seus ternos, suíças e oclinhos. Os Rolling Stones parecem estátuas neoclássicas, brancas e de olhos vazios; como elas, podem encenar o que quiserem: lutas, sensualidades e dramas; tudo isso é silêncio, protegidos por seu nevoeiro de mármore branco.
No meio de todos aqueles cotovelos me afligiu a possibilidade matemática de, em vez dos Rolling Stones, eu estar ali para assistir a um show dos Beatles e quando eles (e eu) nos voltássemos para ver a vista desde os 50 ela fosse insuportávelmente cheia de picos e vales e veredas que serpeiam e gente e coisas e lugares - seria muito. Satisfeito e com meu estoque de esquecimento renovado, saí antes do fim, fui tomar um chope e daí para a cama.


Luiz Paulo Baravelli é artista plástico.



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