São Paulo, quarta, 15 de abril de 1998

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MÚSICA
"Sou grande, não sou pequeno", diz Caetano

Fabiano Accorsi/Folha Imagem
Caetano Veloso faz amanhã, no Palace, estréia nacional do show "Livro Vivo' e diz à Folha que "adora axé music"


MARIO VITOR SANTOS
da Reportagem Local

Caetano Veloso ensaiou durante toda a Semana Santa para preparar a estréia nacional de seu show "Livro Vivo", amanhã. Ele declara que em geral prefere o público de São Paulo ao do Rio e o de Belo Horizonte ao de São Paulo e o de Buenos Aires a todos esses.
Diz que o de São Paulo, em relação ao carioca, reage de maneira mais simples: "As pessoas não parecem auscultar os companheiros para saber como deverão reagir, enquanto o espectador carioca vai tateando em direção à posição a ser tomada. O paulista é um ser da massa. O carioca se sente com responsabilidades, por ter comandado a cultura brasileira desde que o Brasil é Brasil".
Para Caetano, em Belo Horizonte há uma reação de público culto, o silêncio existe na hora certa e o entusiasmo é grande. Em Buenos Aires, o comportamento da platéia chega a um nível genial, segundo ele. O silêncio é profundo e o aplauso explosivo e duradouro, "porque o aplauso menos duradouro do mundo é o brasileiro. Talvez seja falta de proteína, como diria Tom Zé", diz.
Na entrevista abaixo, Caetano responde a quem critica a opção de seu trabalho recente pela percussão de rua da Bahia e defende a axé music, a que se sente visceralmente ligado.

Folha - O que é esse show?
Caetano Veloso -
Nasceu do que me interessou quando fiz o disco "Livro". Tem muitas canções do disco, com o tipo de arranjo mais ou menos adaptado para formação que a gente tem aqui. Praticamente a mesma percussão e os arranjos, que lá tinham uma orquestra grande, foram reduzidos para três metais e um celo, mas são aqueles arranjos. A percussão é basicamente a mesma.
É embrião de uma coisa que fiquei interessado em fazer. Foi se aprofundando desde que eu estava fazendo a excursão do "Fina Estampa" pela Europa: unir o gosto das orquestrações da fase 'cool' do jazz com a rítmica das ruas da Bahia de hoje.
Eu adoro axé music, essa música de Carnaval da Bahia. Acho das coisas mais interessantes que aconteceram no Brasil. A música de Carnaval do Rio de Janeiro, as grandes marchinhas e os sambas de Carnaval desapareceram. Há os sambas-enredo das escolas, um ou outro se destaca fora do desfile, mas é uma coisa específica daquele espetáculo. E a Bahia, justamente a partir dos anos 60, começou.
Eu me sinto muito presente nesse acontecimento do qual me orgulho enormemente. Porque foi a canção "Atrás do Trio Elétrico" (1968) que deu coragem, força e animação para que isso se desenvolvesse e depois outras coisas com as quais eu estive direta ou indiretamente ligado. Fico lembrando que aquelas músicas - "Ala-la-ô", "Se a Canoa Não Virar" e "Jardineira" -, todas as músicas de Carnaval do Rio de Janeiro, as marchinhas e os sambas, que eram uma coisa maravilhosa, têm hoje na Bahia um renascimento com outras características.
Folha - E o jazz?
Veloso -
Quando voltei de Santo Amaro para Salvador em 1960, eu tinha tomado contato em 59 com a bossa nova por meio de João Gilberto, o que foi para mim uma revelação, uma iluminação.
Por causa da convivência com gente de teatro, da boemia e da intelectualidade, tomei contato com o jazz moderno daquela época.
Caíram na minha preferência sobretudo Miles Davis, Thelonius Monk e Chet Baker. Sendo que Miles Davis e Chet Baker nessa época justamente estavam fazendo o que se chamou de cool jazz. Os discos de Miles Davis com Bill Evans, com aquelas orquestrações, eram uma coisa maravilhosa para mim.
Excursionando no ano passado de ônibus pela Europa com o show "Fina Estampa", nós ouvíamos o tempo todo a coleção do Miles Davis com o Bill Evans, que havia sido lançada em CD.
Eu tinha saudade da percussão. Estava já há muito tempo fazendo aquilo. Com saudade da Didá, da percussão de rua da Bahia. Ao mesmo tempo, eu ouvia as músicas de que eu gostava em 1960. Aí disse assim, vou fazer um novo disco, como Dom Casmurro, vou juntar as duas pontas.
Folha - Você concorda com quem acha que Chico Science e o movimento mangue beat se mostram continuadores mais ambiciosos do tropicalismo, mais de acordo com as possibilidades abertas por vocês?
Veloso -
O mangue beat é uma das coisas mais maravilhosas na música brasileira nos últimos tempos. É completamente diferente da axé music, embora o mangue beat seja filho do movimento de músicas de Carnaval da Bahia, indubitavelmente.
O mangue beat é filho do desejo dos pernambucanos recifenses de reproduzirem o Olodum e aí eles partiram para usar a rítmica pernambucana.
Existe um fenômeno de massas, de mercado, de música de Carnaval na Bahia como só houve no Rio até os anos 60. Isso é uma verdade. Não me incomoda a opinião de Dorival Caymmi (que disse que axé music é vulgar, banal etc.). Ele é um deus pra mim, está sentado no topo do Olimpo. Pode dizer o que quiser.
Eu vejo outras coisas que ele não viu. Minha relação visceral, direta, de compromisso, de convivência, de co-participação, de paternidade e irmandade até da axé music é total. Não posso ouvir isso, simplesmente é como se fosse uma pessoa ouvindo débeis mentais falarem, não dá.
Vir comparar se Chico Science é melhor que Timbalada porque é mais sério, ou dizer 'vocês deviam se ligar a Chico Science', ou 'porque a axé music é banal', é o mesmo que um idiota estar falando para mim. Quem lhe disse isso é um imbecil.
Folha - Nas suas referências a Chico Science e o mangue beat, bem como na letra de sua música "Onde o Rio É Mais Baiano", existe a impressão de que para você as coisas se legitimam na medida em que sejam mais ou menos baianas.
Veloso -
Eu acho essas coisas de Pernambuco extraordinárias por serem profundamente pernambucanas. O que disse é que houve um estímulo que veio do Olodum. O que eles fizeram é outra coisa. O caminho é nitidamente pernambucano. O que eu adoro em tudo aquilo é o quanto aquilo parece João Cabral de Melo Neto. Ariano Suassuna fala que não gosta de Tom Jobim, que não gosta de Chico Science, nem de mangue beat, nem de nada pop. Mas quando o Chico Science morreu ele chorou. Porque ele sabe que aquilo é Pernambuco. E depois, "Onde o Rio É Mais Baiano" é uma música que eu fiz para a Mangueira e cantei na Mangueira quando ela fez o desfile das escolas de samba, em homenagem aos quatro baianos.
Não deveria ser surpresa para ninguém. Não é coisa que falei porque sou baiano. No disco do Chico Buarque pra Mangueira, a última faixa é um samba tradicional da Mangueira, composto por cariocas mangueirenses nos anos 40 que fala da Mangueira que é um lugar tão maravilhoso e termina dizendo assim: (canta) "Até parece que eu estou na Bahia". Dizer isso é uma tradição do samba carioca: (canta) "Porque o samba nasceu lá na Bahia".
Isso faz parte do vernáculo do samba carioca. Por isso que está ali na minha canção, naturalmente. Não era para causar espécie. As coisas para mim não são assim. Eu sou grande. Eu não sou pequeno.
Folha - Em seu livro "Verdade Tropical" você critica as conclusões da obra de Samuel Huntington em "O Choque das Civilizações", para quem o mundo presencia um retorno de antigas forças civilizacionais, antes contidas pela Guerra Fria. Huntington acabaria privilegiando a defesa dos países ricos e brancos. No entanto, subsidiariamente, você parece se apoiar nesse retorno das chamadas civilizações para justificar o destino do Brasil enquanto nação no futuro.
Veloso -
Pode ser que logicamente a conclusão seja essa. Mas é tão ilógico aquele final do meu livro. Porque foi escrito com muita irresponsabilidade e com muita paixão. Estava cansado de escrever o livro, de fazer tudo com cuidado, escrevi assim num rompante.
Mas não tenho tanta certeza. O que está dito ali é que é abominável que Huntington possa dizer, sem que ninguém reclame, que há uma civilização ocidental e uma civilização latino-americana. Isso é uma estupidez. E que a gente só leva calado porque a gente é capacho, como eu não sou capacho, não quero que sejamos capacho, não fiquei calado.



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