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MÚSICA
"Sou grande, não sou pequeno", diz Caetano
Fabiano Accorsi/Folha Imagem
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Caetano Veloso faz amanhã, no Palace, estréia nacional do show "Livro Vivo' e diz à Folha que "adora axé music"
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MARIO VITOR SANTOS
da Reportagem Local
Caetano Veloso ensaiou durante
toda a Semana Santa para preparar a estréia nacional de seu show
"Livro Vivo", amanhã. Ele declara que em geral prefere o público
de São Paulo ao do Rio e o de Belo
Horizonte ao de São Paulo e o de
Buenos Aires a todos esses.
Diz que o de São Paulo, em relação ao carioca, reage de maneira
mais simples: "As pessoas não parecem auscultar os companheiros
para saber como deverão reagir,
enquanto o espectador carioca vai
tateando em direção à posição a
ser tomada. O paulista é um ser da
massa. O carioca se sente com responsabilidades, por ter comandado a cultura brasileira desde que o
Brasil é Brasil".
Para Caetano, em Belo Horizonte há uma reação de público culto,
o silêncio existe na hora certa e o
entusiasmo é grande. Em Buenos
Aires, o comportamento da platéia chega a um nível genial, segundo ele. O silêncio é profundo e
o aplauso explosivo e duradouro,
"porque o aplauso menos duradouro do mundo é o brasileiro.
Talvez seja falta de proteína, como
diria Tom Zé", diz.
Na entrevista abaixo, Caetano
responde a quem critica a opção
de seu trabalho recente pela percussão de rua da Bahia e defende a
axé music, a que se sente visceralmente ligado.
Folha - O que é esse show?
Caetano Veloso - Nasceu do
que me interessou quando fiz o
disco "Livro". Tem muitas canções do disco, com o tipo de arranjo mais ou menos adaptado para
formação que a gente tem aqui.
Praticamente a mesma percussão e
os arranjos, que lá tinham uma orquestra grande, foram reduzidos
para três metais e um celo, mas são
aqueles arranjos. A percussão é basicamente a mesma.
É embrião de uma coisa que fiquei interessado em fazer. Foi se
aprofundando desde que eu estava
fazendo a excursão do "Fina Estampa" pela Europa: unir o gosto
das orquestrações da fase 'cool' do
jazz com a rítmica das ruas da Bahia de hoje.
Eu adoro axé music, essa música
de Carnaval da Bahia. Acho das
coisas mais interessantes que
aconteceram no Brasil. A música
de Carnaval do Rio de Janeiro, as
grandes marchinhas e os sambas
de Carnaval desapareceram. Há os
sambas-enredo das escolas, um ou
outro se destaca fora do desfile,
mas é uma coisa específica daquele
espetáculo. E a Bahia, justamente a
partir dos anos 60, começou.
Eu me sinto muito presente nesse acontecimento do qual me orgulho enormemente. Porque foi a
canção "Atrás do Trio Elétrico"
(1968) que deu coragem, força e
animação para que isso se desenvolvesse e depois outras coisas
com as quais eu estive direta ou indiretamente ligado. Fico lembrando que aquelas músicas -
"Ala-la-ô", "Se a Canoa Não Virar" e "Jardineira" -, todas as
músicas de Carnaval do Rio de Janeiro, as marchinhas e os sambas,
que eram uma coisa maravilhosa,
têm hoje na Bahia um renascimento com outras características.
Folha - E o jazz?
Veloso - Quando voltei de Santo Amaro para Salvador em 1960,
eu tinha tomado contato em 59
com a bossa nova por meio de João
Gilberto, o que foi para mim uma
revelação, uma iluminação.
Por causa da convivência com
gente de teatro, da boemia e da intelectualidade, tomei contato com
o jazz moderno daquela época.
Caíram na minha preferência sobretudo Miles Davis, Thelonius
Monk e Chet Baker. Sendo que Miles Davis e Chet Baker nessa época
justamente estavam fazendo o que
se chamou de cool jazz. Os discos
de Miles Davis com Bill Evans,
com aquelas orquestrações, eram
uma coisa maravilhosa para mim.
Excursionando no ano passado
de ônibus pela Europa com o show
"Fina Estampa", nós ouvíamos o
tempo todo a coleção do Miles Davis com o Bill Evans, que havia sido lançada em CD.
Eu tinha saudade da percussão.
Estava já há muito tempo fazendo
aquilo. Com saudade da Didá, da
percussão de rua da Bahia. Ao
mesmo tempo, eu ouvia as músicas de que eu gostava em 1960. Aí
disse assim, vou fazer um novo
disco, como Dom Casmurro, vou
juntar as duas pontas.
Folha - Você concorda com quem
acha que Chico Science e o movimento mangue beat se mostram
continuadores mais ambiciosos do
tropicalismo, mais de acordo com
as possibilidades abertas por vocês?
Veloso - O mangue beat é uma
das coisas mais maravilhosas na
música brasileira nos últimos tempos. É completamente diferente da
axé music, embora o mangue beat
seja filho do movimento de músicas de Carnaval da Bahia, indubitavelmente.
O mangue beat é filho do desejo
dos pernambucanos recifenses de
reproduzirem o Olodum e aí eles
partiram para usar a rítmica pernambucana.
Existe um fenômeno de massas,
de mercado, de música de Carnaval na Bahia como só houve no Rio
até os anos 60. Isso é uma verdade.
Não me incomoda a opinião de
Dorival Caymmi (que disse que
axé music é vulgar, banal etc.). Ele
é um deus pra mim, está sentado
no topo do Olimpo. Pode dizer o
que quiser.
Eu vejo outras coisas que ele não
viu. Minha relação visceral, direta,
de compromisso, de convivência,
de co-participação, de paternidade
e irmandade até da axé music é total. Não posso ouvir isso, simplesmente é como se fosse uma pessoa
ouvindo débeis mentais falarem,
não dá.
Vir comparar se Chico Science é
melhor que Timbalada porque é
mais sério, ou dizer 'vocês deviam
se ligar a Chico Science', ou 'porque a axé music é banal', é o mesmo que um idiota estar falando para mim. Quem lhe disse isso é um
imbecil.
Folha - Nas suas referências a
Chico Science e o mangue beat,
bem como na letra de sua música
"Onde o Rio É Mais Baiano", existe
a impressão de que para você as
coisas se legitimam na medida em
que sejam mais ou menos baianas.
Veloso - Eu acho essas coisas de
Pernambuco extraordinárias por
serem profundamente pernambucanas. O que disse é que houve um
estímulo que veio do Olodum. O
que eles fizeram é outra coisa. O
caminho é nitidamente pernambucano. O que eu adoro em tudo
aquilo é o quanto aquilo parece
João Cabral de Melo Neto. Ariano
Suassuna fala que não gosta de
Tom Jobim, que não gosta de Chico Science, nem de mangue beat,
nem de nada pop. Mas quando o
Chico Science morreu ele chorou.
Porque ele sabe que aquilo é Pernambuco. E depois, "Onde o Rio
É Mais Baiano" é uma música que
eu fiz para a Mangueira e cantei na
Mangueira quando ela fez o desfile
das escolas de samba, em homenagem aos quatro baianos.
Não deveria ser surpresa para
ninguém. Não é coisa que falei
porque sou baiano. No disco do
Chico Buarque pra Mangueira, a
última faixa é um samba tradicional da Mangueira, composto por
cariocas mangueirenses nos anos
40 que fala da Mangueira que é um
lugar tão maravilhoso e termina
dizendo assim: (canta) "Até parece
que eu estou na Bahia". Dizer isso
é uma tradição do samba carioca:
(canta) "Porque o samba nasceu lá
na Bahia".
Isso faz parte do vernáculo do
samba carioca. Por isso que está ali
na minha canção, naturalmente.
Não era para causar espécie. As
coisas para mim não são assim. Eu
sou grande. Eu não sou pequeno.
Folha - Em seu livro "Verdade
Tropical" você critica as conclusões da obra de Samuel Huntington em "O Choque das Civilizações", para quem o mundo presencia um retorno de antigas forças civilizacionais, antes contidas
pela Guerra Fria. Huntington acabaria privilegiando a defesa dos
países ricos e brancos. No entanto,
subsidiariamente, você parece se
apoiar nesse retorno das chamadas civilizações para justificar o
destino do Brasil enquanto nação
no futuro.
Veloso - Pode ser que logicamente a conclusão seja essa. Mas é
tão ilógico aquele final do meu livro. Porque foi escrito com muita
irresponsabilidade e com muita
paixão. Estava cansado de escrever
o livro, de fazer tudo com cuidado,
escrevi assim num rompante.
Mas não tenho tanta certeza. O
que está dito ali é que é abominável
que Huntington possa dizer, sem
que ninguém reclame, que há uma
civilização ocidental e uma civilização latino-americana. Isso é
uma estupidez. E que a gente só leva calado porque a gente é capacho, como eu não sou capacho,
não quero que sejamos capacho,
não fiquei calado.
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