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CONTARDO CALLIGARIS
Falando de adoção, desculpem o politicamente incorreto
Nos próximos dias, um jovem
de 20 anos que já foi brasileiro
virá dos Estados Unidos sem
carregar passaporte. Estará
munido de uma autorização de
retorno da autoridade consular brasileira.
O jovem não é um imigrante
ilegal expulso. Ele era residente
permanente nos EUA.
Segundo a nova lei de imigração de 1996, o residente que se
torne réu de um crime dito de
torpeza moral é indesejável e,
portanto, deportado. Isso depois de cumprir pena. Para a lei
é moralmente torpe qualquer
crime passível, em princípio, de
mais de um ano de prisão.
Todos os crimes relativos a
drogas também caem na categoria. Certo, cada criminoso
pode vir a ser recidivista e os
recidivistas custam caro. A lei
parece emanar do mesmo espírito que quis privar os imigrantes residentes nos EUA do direito a subsídios sociais. Em suma, imigrantes tudo bem, mas
de graça, por favor.
Pior ainda, a lei é retroativa,
ou seja, se aplica até para crimes cometidos antes de sua instituição. Enfim, é uma lei curiosa para um país que gosta
(com razão) de gargarejar direitos humanos. De fato, nosso
jovem teve uma adolescência
problemática: furtos, histórias
de droga, embora nada de violência. Tendo cumprido sua pena, ele deveria agora voltar ao
Brasil nativo.
Parece ordinária administração consular, se não fosse um
detalhe: o jovem, descido do
avião, estará em terra, para
ele, estrangeira. Ele não conhece ninguém no Brasil -nem
amigos nem família. Não fala
português, e Deus sabe quais
lembranças ele tem de sua infância brasileira.
O rapaz veio para os Estados
Unidos ainda criança. Aos 9, 10
anos de idade, foi adotado por
uma família norte-americana.
A adoção, de novo segundo a
lei americana, não implica a
naturalização da criança adotada. Só garante à criança uma
autorização de residência no
país. A naturalização pode intervir, a pedido, depois de cinco
anos de residência.
Os pais do rapaz não pediram. Será que esqueceram? Será que não quiseram? Algo deve ter tornado a adoção um
pouco diferente do cartão-postal com o qual os pais podiam
sonhar. Por exemplo, neste
meio tempo eles divorciaram.
Assim um belo dia chega ao
consulado do Brasil em Boston
o pedido de viabilizar a deportação do jovem para o Brasil.
Ele cumpriu sua pena e está
agora sob custódia da imigração.
Como me foi relatado pelo
ministro Mário Vilalva, cônsul-geral do Brasil em Boston,
foi sugerido à mãe adotiva do
garoto (que luta hoje para
guardá-lo nos EUA) apelar da
sentença. A coisa não logrou
por decurso de prazo. Foi pedida uma avaliação psiquiátrica.
Afinal, nos anos formadores
do garoto não faltaram traumas: um orfanato no Brasil (a
Funabem, Fundação Nacional
do Bem-Estar do Menor, segundo fontes não verificadas),
a adoção tardia, o deslocamento para outra cultura e língua,
uma família adotiva que se
rompe etc.
O laudo da prisão decretou
tudo o.k. Surpreendente, sobretudo para uma cultura como a
americana que, por assim dizer, tende a desculpar homicídios por resfriados infantis.
Enfim, aqui estamos neste
momento -o consulado negou
a documentação de retorno. A
razão é fácil de entender para
os brasileiros (menos para os
americanos). Eu perguntaria: o
jovem está voltando como brasileiro deportado ou como
americano degredado?
Falei com Steve Weinberg, da
Wildes & Weinberg, um dos
mais prestigiosos escritórios de
advocacia de imigração de Nova York e dos EUA. Weinberg,
além de me instruir sobre a lei
de 1996, comentou que a atual
posição brasileira forçaria os
americanos a liberar o jovem
cuja custódia só se justifica na
espera de deportação. Mas
acrescentou que será muito difícil evitar este desfecho.
Se o rapaz tiver de voltar, seria bom que algum organismo
da sociedade civil (e não a Polícia Federal) o esperasse naquele dia com um sorriso e uma
mão. Seria bom que ele não
voltasse para morrer na rua ou
seguir na cadeia.
De qualquer forma, as adoções deveriam ser recusadas
para países cuja legislação não
outorga estatuto de cidadão à
criança adotada. Temos crianças para dar, é suficientemente
doloroso assim. Não é preciso
tolerar que as peguem para dar
uma voltinha e devolvam se
não gostarem.
É curioso como podemos
amar as crianças. Pais potenciais atravessam montes e mares para conseguir uma, apostam que diferenças de língua e
cultura não importarão nem
com um menino de 9 anos.
Querem enfim ter seu rebento.
É um amor perigoso: dura se
a criança devolve a imagem feliz que os pais desejavam ver.
Quando algo não dá certo,
quando a criança faz careta em
vez de sorrir, o amor se torna
facilmente decepção, ódio, indiferença ou esquecimento da
formalidade de naturalização.
A sociedade americana respeita o consumidor. É sempre
possível, durante duas semanas, devolver um objeto adquirido. Talvez fosse bom colocar,
para as adoções, o mesmo limite de tempo.
Sem isso, afinal, se a lei autoriza a devolução das crianças
que acabaram desobedecendo
depois de 8 anos, por que não
devolver as que ficaram com
asma ou alguma outra doença
chata e cara? Ou, então, aquelas adotadas quando pareciam
bem brancas e foram ficando
escurinhas?
Desculpe, estou ficando politicamente incorreto, mas há de
quê.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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