São Paulo, Quinta-feira, 15 de Abril de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS
Falando de adoção, desculpem o politicamente incorreto

Nos próximos dias, um jovem de 20 anos que já foi brasileiro virá dos Estados Unidos sem carregar passaporte. Estará munido de uma autorização de retorno da autoridade consular brasileira.
O jovem não é um imigrante ilegal expulso. Ele era residente permanente nos EUA.
Segundo a nova lei de imigração de 1996, o residente que se torne réu de um crime dito de torpeza moral é indesejável e, portanto, deportado. Isso depois de cumprir pena. Para a lei é moralmente torpe qualquer crime passível, em princípio, de mais de um ano de prisão.
Todos os crimes relativos a drogas também caem na categoria. Certo, cada criminoso pode vir a ser recidivista e os recidivistas custam caro. A lei parece emanar do mesmo espírito que quis privar os imigrantes residentes nos EUA do direito a subsídios sociais. Em suma, imigrantes tudo bem, mas de graça, por favor.
Pior ainda, a lei é retroativa, ou seja, se aplica até para crimes cometidos antes de sua instituição. Enfim, é uma lei curiosa para um país que gosta (com razão) de gargarejar direitos humanos. De fato, nosso jovem teve uma adolescência problemática: furtos, histórias de droga, embora nada de violência. Tendo cumprido sua pena, ele deveria agora voltar ao Brasil nativo.
Parece ordinária administração consular, se não fosse um detalhe: o jovem, descido do avião, estará em terra, para ele, estrangeira. Ele não conhece ninguém no Brasil -nem amigos nem família. Não fala português, e Deus sabe quais lembranças ele tem de sua infância brasileira.
O rapaz veio para os Estados Unidos ainda criança. Aos 9, 10 anos de idade, foi adotado por uma família norte-americana. A adoção, de novo segundo a lei americana, não implica a naturalização da criança adotada. Só garante à criança uma autorização de residência no país. A naturalização pode intervir, a pedido, depois de cinco anos de residência.
Os pais do rapaz não pediram. Será que esqueceram? Será que não quiseram? Algo deve ter tornado a adoção um pouco diferente do cartão-postal com o qual os pais podiam sonhar. Por exemplo, neste meio tempo eles divorciaram.
Assim um belo dia chega ao consulado do Brasil em Boston o pedido de viabilizar a deportação do jovem para o Brasil. Ele cumpriu sua pena e está agora sob custódia da imigração.
Como me foi relatado pelo ministro Mário Vilalva, cônsul-geral do Brasil em Boston, foi sugerido à mãe adotiva do garoto (que luta hoje para guardá-lo nos EUA) apelar da sentença. A coisa não logrou por decurso de prazo. Foi pedida uma avaliação psiquiátrica.
Afinal, nos anos formadores do garoto não faltaram traumas: um orfanato no Brasil (a Funabem, Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, segundo fontes não verificadas), a adoção tardia, o deslocamento para outra cultura e língua, uma família adotiva que se rompe etc.
O laudo da prisão decretou tudo o.k. Surpreendente, sobretudo para uma cultura como a americana que, por assim dizer, tende a desculpar homicídios por resfriados infantis.
Enfim, aqui estamos neste momento -o consulado negou a documentação de retorno. A razão é fácil de entender para os brasileiros (menos para os americanos). Eu perguntaria: o jovem está voltando como brasileiro deportado ou como americano degredado?
Falei com Steve Weinberg, da Wildes & Weinberg, um dos mais prestigiosos escritórios de advocacia de imigração de Nova York e dos EUA. Weinberg, além de me instruir sobre a lei de 1996, comentou que a atual posição brasileira forçaria os americanos a liberar o jovem cuja custódia só se justifica na espera de deportação. Mas acrescentou que será muito difícil evitar este desfecho.
Se o rapaz tiver de voltar, seria bom que algum organismo da sociedade civil (e não a Polícia Federal) o esperasse naquele dia com um sorriso e uma mão. Seria bom que ele não voltasse para morrer na rua ou seguir na cadeia.
De qualquer forma, as adoções deveriam ser recusadas para países cuja legislação não outorga estatuto de cidadão à criança adotada. Temos crianças para dar, é suficientemente doloroso assim. Não é preciso tolerar que as peguem para dar uma voltinha e devolvam se não gostarem.
É curioso como podemos amar as crianças. Pais potenciais atravessam montes e mares para conseguir uma, apostam que diferenças de língua e cultura não importarão nem com um menino de 9 anos. Querem enfim ter seu rebento.
É um amor perigoso: dura se a criança devolve a imagem feliz que os pais desejavam ver. Quando algo não dá certo, quando a criança faz careta em vez de sorrir, o amor se torna facilmente decepção, ódio, indiferença ou esquecimento da formalidade de naturalização.
A sociedade americana respeita o consumidor. É sempre possível, durante duas semanas, devolver um objeto adquirido. Talvez fosse bom colocar, para as adoções, o mesmo limite de tempo.
Sem isso, afinal, se a lei autoriza a devolução das crianças que acabaram desobedecendo depois de 8 anos, por que não devolver as que ficaram com asma ou alguma outra doença chata e cara? Ou, então, aquelas adotadas quando pareciam bem brancas e foram ficando escurinhas?
Desculpe, estou ficando politicamente incorreto, mas há de quê.

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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