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LIVROS
Borges não publicaria hoje, diz Piglia
CYNARA MENEZES
da Reportagem Local
O escritor argentino Ricardo Piglia, 58, tem uma hipótese assustadora: se, nos dias atuais, um autor
desconhecido chegasse a uma editora sobraçando um certo conto
inédito intitulado "O Aleph" e outros da mesma linhagem, muito
possivelmente seria rejeitado.
"Acho que, se hoje Jorge Luis
Borges apresentasse um grupo de
contos como os que escrevia entre
os anos 40 e 50, talvez não os publicassem. Diriam que contos não
vendem", imagina Piglia.
Como felizmente isso não aconteceu, o conterrâneo do autor de
"O Aleph" e "Ficções" está no Brasil para uma conferência sobre o
Borges que não só conseguiu publicar estes, mas outros muitos livros, e cujas "Obras Completas" a
editora Globo está publicando em
traduções novas ou revistas.
O primeiro volume, lançado em
agosto de 98, foi indicado ao Prêmio Jabuti como uma das melhores traduções do ano. Agora está
saindo o segundo volume, com os
textos borgianos publicados originalmente entre 1952 e 1972.
A Globo prevê que até o final do
ano serão publicados os outros
dois volumes, fechando a edição
que comemora o centenário de
nascimento do autor argentino,
em agosto.
Ricardo Piglia, autor de vários
ensaios sobre Borges e do romance
"Dinheiro Queimado", entre outros, pretende centrar sua conferência de hoje à noite no auditório
do Masp (Museu de Arte de São
Paulo) no método borgiano de
criar ficção.
"A partir de certos contos vou
propor algumas hipóteses de leitura. Acho que a obra de Borges tem
uma particularidade, nunca se termina de lê-la", disse Piglia à Folha,
por telefone, de sua casa em Nova
York, onde ensina na Universidade de Princeton.
Como bom ficcionista, ele faz
mistério sobre o que vai levar exatamente à conferência, intitulada
"Borges, a Arte de Narrar". Por
exemplo: comentou que vai falar
das "referências" que Borges tinha
sobre o Brasil, mas preferiu fazer
surpresa.
No novo volume das obras completas, há pelo menos uma: o "Poema da Quantidade", assinado "São
Paulo, 1970", ano em que ele veio
ao Brasil para receber o Prêmio
Ciccillo Matarazzo.
São ao todo sete livros, que já incluem trabalhos posteriores ao período em que Borges ficou cego e
não mais escrevia, mas ditava seus
textos, a partir daí mais curtos e
também marcados pela volta ao
poema.
Piglia opina que, mesmo cego,
Borges manteve sua qualidade literária intata, embora considere "O
Aleph" e "Ficções" como o auge da
obra borgiana, trabalhos que sozinhos "justificam seu lugar atual e
as comemorações em torno de seu
centenário".
As obras pós-cegueira "têm uma
altíssima qualidade, basicamente
porque ele tinha uma percepção
muito nítida do funcionamento de
sua obra e da literatura, então não
fazia mais que aprofundar o que
havia construído", disse.
Além disso, afirma, "Borges tinha uma memória fantástica e era
capaz de elaborar os textos mentalmente antes de ditá-los."
Piglia recordou as circunstâncias
em que o conheceu. "Eu era um jovem aspirante a escritor e o procurei porque tinha um projeto encomendado por uma editora para
que ele fizesse uma seleção de contos do (escritor inglês) Joseph Conrad."
"Borges me disse que podíamos
incluir um conto chamado "O Duelo", começou a contar histórias de
duelos ao longo da literatura e se
esqueceu de Conrad. E eu também.
Foi como se estivesse assistindo à
construção de um conto do próprio Borges", lembrou.
Para a sorte de Piglia e sua geração, Borges era, àquela altura, uma
presença constante na vida de Buenos Aires. "Vi Borges várias vezes,
como todos os argentinos. Era
muito amável, atendia o telefone
diretamente", conta. "Com ele ali,
tínhamos a impressão de que a literatura estava sempre em algum lugar da cidade."
Piglia não só se define como borgiano "no sentido de reconhecer o
milagre que foi para os argentinos"
o fato de Borges escrever em sua
língua, como o aponta como o "inventor" do realismo fantástico na
América Latina.
"A literatura argentina produziu
dois fenômenos literários únicos: a
literatura gauchesca e a literatura
fantástica dos anos 40, um acontecimento que eu atribuiria a Borges", disse.
"Ele não somente escrevia contos
fantásticos como mantinha ao seu
redor um conjunto de escritores
que, junto a ele, estavam todo o
tempo discutindo tramas e armando histórias."
Para Ricardo Piglia, "os outros
são grandes, mas Borges foi o conquistador de um território novo.
Gabriel García Márquez é um discípulo satisfeito de Borges. Digamos que deu um tom folclórico,
mas "Cem Anos de Solidão" tem
muitas coisas que vêm de Borges".
Sem querer desapontar quem for
à conferência de hoje à noite, surpreendentemente, e ao contrário
de muitos borgianos, Piglia não fala mal da viúva do escritor, María
Kodama. "Ela está ajudando na difusão das obras de Borges e isso é
muito útil."
O quê: conferência "Borges, a Arte de
Narrar", com o escritor argentino Ricardo
Piglia
Quando: hoje, às 19h30
Onde: auditório do Museu de Arte de São
Paulo (av. Paulista, 1.578, tel. 011/251-5644)
Quanto: entrada franca em número
limitado
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