São Paulo, Quinta-feira, 15 de Abril de 1999
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LIVROS
Borges não publicaria hoje, diz Piglia

CYNARA MENEZES
da Reportagem Local

O escritor argentino Ricardo Piglia, 58, tem uma hipótese assustadora: se, nos dias atuais, um autor desconhecido chegasse a uma editora sobraçando um certo conto inédito intitulado "O Aleph" e outros da mesma linhagem, muito possivelmente seria rejeitado.
"Acho que, se hoje Jorge Luis Borges apresentasse um grupo de contos como os que escrevia entre os anos 40 e 50, talvez não os publicassem. Diriam que contos não vendem", imagina Piglia.
Como felizmente isso não aconteceu, o conterrâneo do autor de "O Aleph" e "Ficções" está no Brasil para uma conferência sobre o Borges que não só conseguiu publicar estes, mas outros muitos livros, e cujas "Obras Completas" a editora Globo está publicando em traduções novas ou revistas.
O primeiro volume, lançado em agosto de 98, foi indicado ao Prêmio Jabuti como uma das melhores traduções do ano. Agora está saindo o segundo volume, com os textos borgianos publicados originalmente entre 1952 e 1972.
A Globo prevê que até o final do ano serão publicados os outros dois volumes, fechando a edição que comemora o centenário de nascimento do autor argentino, em agosto.
Ricardo Piglia, autor de vários ensaios sobre Borges e do romance "Dinheiro Queimado", entre outros, pretende centrar sua conferência de hoje à noite no auditório do Masp (Museu de Arte de São Paulo) no método borgiano de criar ficção.
"A partir de certos contos vou propor algumas hipóteses de leitura. Acho que a obra de Borges tem uma particularidade, nunca se termina de lê-la", disse Piglia à Folha, por telefone, de sua casa em Nova York, onde ensina na Universidade de Princeton.
Como bom ficcionista, ele faz mistério sobre o que vai levar exatamente à conferência, intitulada "Borges, a Arte de Narrar". Por exemplo: comentou que vai falar das "referências" que Borges tinha sobre o Brasil, mas preferiu fazer surpresa.
No novo volume das obras completas, há pelo menos uma: o "Poema da Quantidade", assinado "São Paulo, 1970", ano em que ele veio ao Brasil para receber o Prêmio Ciccillo Matarazzo.
São ao todo sete livros, que já incluem trabalhos posteriores ao período em que Borges ficou cego e não mais escrevia, mas ditava seus textos, a partir daí mais curtos e também marcados pela volta ao poema.
Piglia opina que, mesmo cego, Borges manteve sua qualidade literária intata, embora considere "O Aleph" e "Ficções" como o auge da obra borgiana, trabalhos que sozinhos "justificam seu lugar atual e as comemorações em torno de seu centenário".
As obras pós-cegueira "têm uma altíssima qualidade, basicamente porque ele tinha uma percepção muito nítida do funcionamento de sua obra e da literatura, então não fazia mais que aprofundar o que havia construído", disse.
Além disso, afirma, "Borges tinha uma memória fantástica e era capaz de elaborar os textos mentalmente antes de ditá-los."
Piglia recordou as circunstâncias em que o conheceu. "Eu era um jovem aspirante a escritor e o procurei porque tinha um projeto encomendado por uma editora para que ele fizesse uma seleção de contos do (escritor inglês) Joseph Conrad."
"Borges me disse que podíamos incluir um conto chamado "O Duelo", começou a contar histórias de duelos ao longo da literatura e se esqueceu de Conrad. E eu também. Foi como se estivesse assistindo à construção de um conto do próprio Borges", lembrou.
Para a sorte de Piglia e sua geração, Borges era, àquela altura, uma presença constante na vida de Buenos Aires. "Vi Borges várias vezes, como todos os argentinos. Era muito amável, atendia o telefone diretamente", conta. "Com ele ali, tínhamos a impressão de que a literatura estava sempre em algum lugar da cidade."
Piglia não só se define como borgiano "no sentido de reconhecer o milagre que foi para os argentinos" o fato de Borges escrever em sua língua, como o aponta como o "inventor" do realismo fantástico na América Latina.
"A literatura argentina produziu dois fenômenos literários únicos: a literatura gauchesca e a literatura fantástica dos anos 40, um acontecimento que eu atribuiria a Borges", disse.
"Ele não somente escrevia contos fantásticos como mantinha ao seu redor um conjunto de escritores que, junto a ele, estavam todo o tempo discutindo tramas e armando histórias."
Para Ricardo Piglia, "os outros são grandes, mas Borges foi o conquistador de um território novo. Gabriel García Márquez é um discípulo satisfeito de Borges. Digamos que deu um tom folclórico, mas "Cem Anos de Solidão" tem muitas coisas que vêm de Borges".
Sem querer desapontar quem for à conferência de hoje à noite, surpreendentemente, e ao contrário de muitos borgianos, Piglia não fala mal da viúva do escritor, María Kodama. "Ela está ajudando na difusão das obras de Borges e isso é muito útil."

O quê: conferência "Borges, a Arte de Narrar", com o escritor argentino Ricardo Piglia Quando: hoje, às 19h30 Onde: auditório do Museu de Arte de São Paulo (av. Paulista, 1.578, tel. 011/251-5644) Quanto: entrada franca em número limitado


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