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MÚSICA
Rogério Duprat, 70, maestro por trás do movimento, rompe silêncio e aceita tributo que músicos eletrônicos farão a ele no sábado, em São Paulo
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Tropicália Eletrônica
Fabiana Beltramin/Folha Imagem
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Rogério Duprat, 70, o maestro tropicalista, brinca com seus discípulos Loop B (esq.), 47, e Anvil FX, 35, que conduzirão o tributo "Experiências Tropicais - Duprat Revisitado", que acontece no sábado, no Sesc Pompéia |
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
No ar em São Paulo a partir de
amanhã, o festival eletrônico
Hype não irá se deter só nas últimas experiências underground
francesas. No sábado, um senhor
paulista (embora nascido no Rio)
de 70 anos se tornará objeto de
homenagem inédita concebida
para ele por músicos contemporâneos do ambiente eletrônico.
O senhor é o maestro Rogério
Duprat, que subverteu a ordem
nacionalista da música erudita no
início dos anos 60, com o movimento Música Nova, e em 67 protagonizou grande travessia brasileira do erudito ao popular, apresentando seus discípulos Mutantes a Caetano Veloso e Gilberto
Gil e imaginando inúmeros dos
ebulientes arranjos tropicalistas.
Há anos afastado da música,
Duprat promete que aparecerá no
evento, mas só para assistir. Portador há 30 anos de progressiva
deficiência auditiva, usa-a como
pretexto para hesitar: "Meu problema de ir a shows é não conseguir ouvir. Vira show de mímica".
Duprat conversou com a Folha
sob o olhar atento dos agora discípulos Lourenço Brasil (codinome
Loop B) e Paulo Beto (ou Anvil
FX), que coordenam o tributo de
sábado. Leia trechos.
Folha - Como se iniciou sua trajetória com música?
Rogério Duprat - Começou na
USP, onde entrei com Olivier Toni e meu irmão Régis. Entrei em
filosofia, Régis nas ciências sociais, e adivinha quem era colega
de classe dele? Fernando Henrique Cardoso. Seu pai foi candidato a deputado, e nós, que éramos
comunistas e não éramos filhos
dele, trabalhamos pacas. Ele, o filho do candidato, nunca apareceu
num comício. Ele é assim, foi
acostumado a ser bem servido, e
aí está sendo bem servido há quase dez anos nesta meleca de Brasil.
Toni e Régis eram músicos, me
puseram um violoncelo na mão.
Todo mundo que queria fazer
música de vanguarda, como a
gente, tinha que fazer a via-sacra
dos festivais na Alemanha, ouvir
Karlheinz Stockhausen e Pierre
Boulez. Era música eletrônica,
mas música eletrônica para nós
não é essa coisa que os meninos
chamam de música eletrônica. Na
verdade, essa música é tão primitiva e elementar como qualquer
hully gully. Nem gosto de falar na
frente deles, porque podem pensar que quero demolir. Não é isso
(ri). A música eletrônica cria seus
próprios instrumentais, Stockhausen foi para o laboratório de
eletrônica inventar todos os sons.
Folha - Segundo seus conceitos,
você fez música eletrônica?
Duprat - Sou obrigado a dizer
que fiz, porque sempre usei muito
esses aparatos todos, quando ainda não era hábito. Todos nós mamamos em Boulez e Stockhausen.
Folha - A música foi para você instrumento de atividade comunista?
Duprat - Não sei. Acho mais que
era paralela. Eu tocava bolero,
hully gully, qualquer coisa. Na escola, fiz um samba chamado "Favela da Lapa": "Favela da Lapa/
tão pobre, tão suja/ que vida, senhor" (ri)... Mas trabalhei com a
jovem guarda, cheguei a dirigir
um programa de Roberto Carlos
na TV Record. No começo me entusiasmei. Queria estimular Roberto e Erasmo a mudar um pouco. Mas eles tinham um público
cativo, que gostava daquilo.
A música sinfônica estava ainda
nas mãos de Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, os nacionalistas. Eu
tocava em orquestra sinfônica,
dez anos tocando Guarnieri (ri).
Fomos fazer o Música Nova,
que durou pouco porque não tinha com quem falar. Por ter três
filhos e ter que levar o feijão para
casa, tinha que trabalhar. Não podia ficar brincando de bolinhas,
só. Em 64 adivinha para onde fui?
Para Brasília (ri), dar aula na UnB.
Não aguentava mais ficar no Teatro Municipal, tocando Carlos
Gomes a vida inteira. Se não fosse
eu ia para qualquer manicômio.
Nós explodimos com uma música daquelas exatamente no antro daquela bandidagem. Foi lá
que fizemos grandes concertos de
música aleatória, concerto com
jornal no lugar de partitura, os
músicos escondidos na platéia,
peça feita só com eletrodomésticos ligados na tomada. Foi muito
bem recebido pela molecada. Aí
veio a reação, acharam que era
subversivo, demitiram todos.
Folha - Voltando de Brasília, já
aconteceu o tropicalismo?
Duprat - Cheguei à miséria total,
fiquei na merda um tempão. Um
dos maiores castigos que o sistema dá é ignorar você. Vocês, jovens, cuidado com isso, quando
eles o ignoram é perigo. Preferem
não falar nada a combater, porque não sabem também se vão esbarrar na casca da banana. A liberdade absoluta choca, para
quem não gosta da liberdade.
Era plena ditadura, e a gente tinha pregado no corpo a coisa da
liberdade absoluta. Foi difícil começar a trabalhar de novo. Júlio
Medaglia já estava metido com o
negócio de festivais, conseguiu
que eu fosse ser membro do júri,
em 66. Em 67, apareceu Gilberto
Gil, que queria fazer algo diferente
daquele esquema. Júlio disse que
o cara certo para ele era eu. Chamamos os Mutantes, fizemos o
"Domingo no Parque". Profissionalmente para mim foi um achado, porque eu estava na pior. No
que deu certo, choveu trabalho.
Folha - Por que durou pouco seu
vínculo com os tropicalistas?
Duprat - Estávamos cheios de
projetos juntos, a principal causa
foi a prisão deles mesmo. Quando
voltaram, haviam mudado, eu
também. Já havia acabado a repressão mais brava, não havia
motivo para ficar brigando, brigar
com quem? Se estamos todos de
acordo (ri), não precisa brigar.
Folha - O que você pensa do status de mito do tropicalismo hoje?
Duprat - É a parte mais lamentável de tudo. A gente que batalhou
tanto contra o mito... Eles mantiveram aquele aparato romântico,
do grande astro. Pode não ser necessariamente dinheiro esse estado de que estou falando, de santidade, que o astro acaba tendo. Todos aqueles com quem trabalhei e foram astros tinham aquilo de só
conhecer uma pessoa da conjugação, é só a palavra eu. Confesso
que tentei fugir disso o tempo todo. Não queria jamais virar mito.
Folha - Por isso você se afastou?
Duprat - Ah, não sei. Depois de
trabalhar tanto com os Mutantes,
o que mais se vai fazer? A gente
conseguiu uma certa taxa de coletivização do processo criativo ali
com os baianos e com os Mutantes que se perdeu, é claro.
Folha - O que você acha de ser alvo de um tributo?
Duprat - (Ri.) Esse tributo é que
podia ser dispensado, não é? Podem fazer a coisa que querem sem
precisar ficar fazendo essa coisa
laudatória. Não acho bom.
Folha - É possível fazer alguma
relação entre seu desinteresse pela
música e o problema auditivo?
Duprat - Não sei se haveria uma
relação. Existe uma surdez, causada pelo excesso de uso. Já consultei todos os médicos que pudessem tirar a vaca do brejo (ri).
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