São Paulo, quarta-feira, 15 de maio de 2002

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MÚSICA


Rogério Duprat, 70, maestro por trás do movimento, rompe silêncio e aceita tributo que músicos eletrônicos farão a ele no sábado, em São Paulo


Tropicália Eletrônica

Fabiana Beltramin/Folha Imagem
Rogério Duprat, 70, o maestro tropicalista, brinca com seus discípulos Loop B (esq.), 47, e Anvil FX, 35, que conduzirão o tributo "Experiências Tropicais - Duprat Revisitado", que acontece no sábado, no Sesc Pompéia


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

No ar em São Paulo a partir de amanhã, o festival eletrônico Hype não irá se deter só nas últimas experiências underground francesas. No sábado, um senhor paulista (embora nascido no Rio) de 70 anos se tornará objeto de homenagem inédita concebida para ele por músicos contemporâneos do ambiente eletrônico.
O senhor é o maestro Rogério Duprat, que subverteu a ordem nacionalista da música erudita no início dos anos 60, com o movimento Música Nova, e em 67 protagonizou grande travessia brasileira do erudito ao popular, apresentando seus discípulos Mutantes a Caetano Veloso e Gilberto Gil e imaginando inúmeros dos ebulientes arranjos tropicalistas.
Há anos afastado da música, Duprat promete que aparecerá no evento, mas só para assistir. Portador há 30 anos de progressiva deficiência auditiva, usa-a como pretexto para hesitar: "Meu problema de ir a shows é não conseguir ouvir. Vira show de mímica".
Duprat conversou com a Folha sob o olhar atento dos agora discípulos Lourenço Brasil (codinome Loop B) e Paulo Beto (ou Anvil FX), que coordenam o tributo de sábado. Leia trechos.

Folha - Como se iniciou sua trajetória com música?
Rogério Duprat -
Começou na USP, onde entrei com Olivier Toni e meu irmão Régis. Entrei em filosofia, Régis nas ciências sociais, e adivinha quem era colega de classe dele? Fernando Henrique Cardoso. Seu pai foi candidato a deputado, e nós, que éramos comunistas e não éramos filhos dele, trabalhamos pacas. Ele, o filho do candidato, nunca apareceu num comício. Ele é assim, foi acostumado a ser bem servido, e aí está sendo bem servido há quase dez anos nesta meleca de Brasil.
Toni e Régis eram músicos, me puseram um violoncelo na mão. Todo mundo que queria fazer música de vanguarda, como a gente, tinha que fazer a via-sacra dos festivais na Alemanha, ouvir Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez. Era música eletrônica, mas música eletrônica para nós não é essa coisa que os meninos chamam de música eletrônica. Na verdade, essa música é tão primitiva e elementar como qualquer hully gully. Nem gosto de falar na frente deles, porque podem pensar que quero demolir. Não é isso (ri). A música eletrônica cria seus próprios instrumentais, Stockhausen foi para o laboratório de eletrônica inventar todos os sons.

Folha - Segundo seus conceitos, você fez música eletrônica?
Duprat -
Sou obrigado a dizer que fiz, porque sempre usei muito esses aparatos todos, quando ainda não era hábito. Todos nós mamamos em Boulez e Stockhausen.

Folha - A música foi para você instrumento de atividade comunista?
Duprat -
Não sei. Acho mais que era paralela. Eu tocava bolero, hully gully, qualquer coisa. Na escola, fiz um samba chamado "Favela da Lapa": "Favela da Lapa/ tão pobre, tão suja/ que vida, senhor" (ri)... Mas trabalhei com a jovem guarda, cheguei a dirigir um programa de Roberto Carlos na TV Record. No começo me entusiasmei. Queria estimular Roberto e Erasmo a mudar um pouco. Mas eles tinham um público cativo, que gostava daquilo.
A música sinfônica estava ainda nas mãos de Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, os nacionalistas. Eu tocava em orquestra sinfônica, dez anos tocando Guarnieri (ri).
Fomos fazer o Música Nova, que durou pouco porque não tinha com quem falar. Por ter três filhos e ter que levar o feijão para casa, tinha que trabalhar. Não podia ficar brincando de bolinhas, só. Em 64 adivinha para onde fui? Para Brasília (ri), dar aula na UnB. Não aguentava mais ficar no Teatro Municipal, tocando Carlos Gomes a vida inteira. Se não fosse eu ia para qualquer manicômio.
Nós explodimos com uma música daquelas exatamente no antro daquela bandidagem. Foi lá que fizemos grandes concertos de música aleatória, concerto com jornal no lugar de partitura, os músicos escondidos na platéia, peça feita só com eletrodomésticos ligados na tomada. Foi muito bem recebido pela molecada. Aí veio a reação, acharam que era subversivo, demitiram todos.

Folha - Voltando de Brasília, já aconteceu o tropicalismo?
Duprat -
Cheguei à miséria total, fiquei na merda um tempão. Um dos maiores castigos que o sistema dá é ignorar você. Vocês, jovens, cuidado com isso, quando eles o ignoram é perigo. Preferem não falar nada a combater, porque não sabem também se vão esbarrar na casca da banana. A liberdade absoluta choca, para quem não gosta da liberdade.
Era plena ditadura, e a gente tinha pregado no corpo a coisa da liberdade absoluta. Foi difícil começar a trabalhar de novo. Júlio Medaglia já estava metido com o negócio de festivais, conseguiu que eu fosse ser membro do júri, em 66. Em 67, apareceu Gilberto Gil, que queria fazer algo diferente daquele esquema. Júlio disse que o cara certo para ele era eu. Chamamos os Mutantes, fizemos o "Domingo no Parque". Profissionalmente para mim foi um achado, porque eu estava na pior. No que deu certo, choveu trabalho.

Folha - Por que durou pouco seu vínculo com os tropicalistas?
Duprat -
Estávamos cheios de projetos juntos, a principal causa foi a prisão deles mesmo. Quando voltaram, haviam mudado, eu também. Já havia acabado a repressão mais brava, não havia motivo para ficar brigando, brigar com quem? Se estamos todos de acordo (ri), não precisa brigar.

Folha - O que você pensa do status de mito do tropicalismo hoje?
Duprat -
É a parte mais lamentável de tudo. A gente que batalhou tanto contra o mito... Eles mantiveram aquele aparato romântico, do grande astro. Pode não ser necessariamente dinheiro esse estado de que estou falando, de santidade, que o astro acaba tendo. Todos aqueles com quem trabalhei e foram astros tinham aquilo de só conhecer uma pessoa da conjugação, é só a palavra eu. Confesso que tentei fugir disso o tempo todo. Não queria jamais virar mito.

Folha - Por isso você se afastou?
Duprat -
Ah, não sei. Depois de trabalhar tanto com os Mutantes, o que mais se vai fazer? A gente conseguiu uma certa taxa de coletivização do processo criativo ali com os baianos e com os Mutantes que se perdeu, é claro.

Folha - O que você acha de ser alvo de um tributo?
Duprat -
(Ri.) Esse tributo é que podia ser dispensado, não é? Podem fazer a coisa que querem sem precisar ficar fazendo essa coisa laudatória. Não acho bom.

Folha - É possível fazer alguma relação entre seu desinteresse pela música e o problema auditivo?
Duprat -
Não sei se haveria uma relação. Existe uma surdez, causada pelo excesso de uso. Já consultei todos os médicos que pudessem tirar a vaca do brejo (ri).



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