São Paulo, quarta-feira, 15 de maio de 2002

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ERUDITO/CRÍTICA

Orchestre de Chambre se apresenta no teatro Cultura Artística tocando Haydn, Mozart e Beethoven

Visões do profeta Zacharias em Lausanne

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Existem músicos assim: concentram tanta música por dentro que sobra, naturalmente, para os outros. Têm uma fluência que se confunde com inevitabilidade, uma segurança que transforma o que há de mais raro em obviedade -como se não houvesse outro jeito de tocar. É o caso do pianista e regente Christian Zacharias, que se apresentou anteontem no teatro Cultura Artística com a Orchestre de Chambre de Lausanne. E faz última apresentação hoje.
Regente também, mas pianista em primeiro lugar: e o melhor da noite foi o "Concerto nš 2" para piano e orquestra, de Beethoven (1770-1827). O melhor nem sempre é o mais vistoso. Exemplo: as escalas e arpejos, o "enchimento" que faz papel de transição, tantas vezes, entre motivos e temas e desenvolvimentos. Zacharias transforma água em vinho -não era esse o milagre? Faz cada escala ressoar de segredos, transparentes, mas impossíveis de reproduzir. Tanto maior o impacto, inclusive visual, de vê-lo saltar a toda hora do banco do piano para reger a orquestra. Ou reger sentado mesmo, com as mãos e a cabeça. Rege bonito? Não. Então com muita técnica? Pelo contrário. Mas o que é "técnica" para quem faz a música acontecer?
O "Concerto nš 2" foi, na verdade, o primeiro a ser composto por Beethoven, em fins da década de 1780. Foi revisto quatro vezes, em 1793, 95, 98 e, finalmente, em 1801. A hesitação se explica, sonoramente, quando se escuta o quanto de Mozart (1756-91) ainda domina a imaginação do sucessor. Mas Zacharias fez dele uma linda afronta à memória do modelo. Assim como fez a abertura das "Bodas de Fígaro", no bis, ecoar a energia da "Sinfonia nš 2" de Beethoven (que é a segunda mesmo, também de 1801). São as alegrias da influência.
Para compor o painel completo era preciso Haydn (1732-1809) -de quem eles tocaram o "Noturno nš 1", no início. Menos noturno do que matinal, exceto no "Presto", que é uma pequena máquina perfeita, cheia de graça, que vem e que passa, e sem nenhuma preocupação de ser a coisa mais linda que a gente já viu passar. Mas Haydn é sempre uma escola, e sempre um prazer.
A orquestra vem da Suíça francesa, mas toca à maneira alemã. Em todos os sentidos: do jeito de segurar o arco do contrabaixo ao som dos metais, do espírito irônico até certa ingenuidade, ou expressão direta dos violinos. Tudo muito exposto, para o bem ou para o mal, como nos filmes de Fassbinder e Von Trotta. Não é uma orquestra dos sonhos, nem de "Cidade dos Sonhos"; não é daquelas que faz a gente chegar em casa correndo, tomar banho às pressas e se arrumar a jato, comer uma fatia de queijo sem mastigar, pegar o carro com a gasolina na reserva, enfrentar o trânsito malévolo da cidade, se arriscar pelas catacumbas do estacionamento na praça Roosevelt, chegar ao teatro afoito e desabar, afinal, aliviado, na cadeira, para ouvir. Mas toca honestamente; e isso faz bem.
Adivinha quem desafinou? Elas. As de sempre. As impossíveis. As adoráveis. As caprichosas trompas, ninfas da imperfeição e do ideal.
Resumo do concerto: Haydn amava Mozart que amava Beethoven que não amava ninguém. Não tinha tempo para essas coisas. Seu reino é demais desse mundo, que ele não cansa de reformar, conforme as lições transparentes, mas impossíveis de repetir, do profeta e do pianista Zacharias.


Orchestre de Chambre de Lausanne    
Regente: Christian Zacharias
Programa: obras de Mozart, Schubert
Onde: teatro Cultura Artística (r. Nestor Pestana, 196, SP, tel. 0/xx/11/3256-0223)
Quando: hoje, às 21h
Quanto: de R$ 80 a R$ 160




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