São Paulo, domingo, 15 de maio de 2005

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MÔNICA BERGAMO

Era uma vez na América

Ana Carolina Fernandes/ Folha Imagem
Glória: seis horas em pé escrevendo a trama das oito


De calça preta, jaqueta preta e sapato de salto também preto, a novelista Glória Perez está em pé, há seis horas, escrevendo o capítulo 69 de "América", a novela das oito da TV Globo. "Adoro [escrever em pé]", diz ela. "Não sei te dizer por quê."

Todos os dias, Glória sai de seu apartamento, em Copacabana, por volta das 11h30. Segue num Audi preto para o escritório que montou num flat em Ipanema (o mesmo em que até a semana passada morava Caetano Veloso). Lá, sozinha, passa até sete horas escrevendo num laptop, na bancada do flat que separa a cozinha da sala, sem quase nunca se sentar. Também nada come -de barriga vazia, pensa melhor, explica. No lugar do almoço, só xícaras de café ou chocolate que ela mesma prepara. E cigarros.

Nos últimos tempos, Glória, que sempre dirigiu o próprio carro, tem andado com dois seguranças. A TV Globo achou melhor assim depois que a autora recebeu ameaças por exibir cenas de rodeios na novela. Entre outras coisas, militantes anônimos lotaram a página da novelista no Orkut com ofensas e até fotos de Daniela, sua filha morta em 1992. "Esses protetores de animais fizeram isso. Ando com seguranças por causa deles", diz ela.

São perto de 19h de quarta-feira, 11, e Glória coloca um ponto final no capítulo 69. Fecha o laptop e se senta diante de outro computador. Começa a mostrar os discos em que estão armazenadas dezenas de entrevistas com narradores de rodeios, brasileiros nos EUA, cegos. Por quase dois anos, ela fez um trabalho intenso de pesquisa, visitando e entrevistando pessoas nas quais se baseariam os personagens de "América".

Glória se detém nas imagens de "Bandido", o touro de uma tonelada que já derrubou mais de 180 peões na vida real e que é uma das "estrelas" de "América". Mostra cenas gravadas em rodeios em câmera lenta. Quer provar que o sedem, uma corda que circula o animal, não é amarrado nos testículos do touro. "Dizer que apertam o animal...isso é mentira, é loucura." Glória volta a cena três vezes. "É loucura."

"Eles [protetores dos animais que a atacaram] nunca foram ao rodeio. É difícil falar de uma coisa que nunca viram", diz ela.

Glória afirma que nunca viu cenas de perversidade nos grandes rodeios.

Ela coloca no computador uma entrevista de Nelyowan, o peão que desafiou o touro "Bandido" duas vezes -e se deu mal. Na segunda vez, ele procurou "Bandido" para um papo. Pediu que o touro o compreendesse porque montaria nele por uma questão profissional. "Olha que relação bonita...", diz Glória.

A novelista afirma que vários peões conversam com os bichos e que, segundo eles, há touros que até choram ao ouvi-los. Na novela, Tião, interpretado por Murilo Benício, conversa com um touro de estimação.

Já são 19h30, hora de voltar para casa e ver a novela. Glória apaga as luzes da cozinha, da sala, do quarto -onde há uma cama e fotos da filha, e onde fica uma boneca da Mônica, que foi de Daniela. Há também uma foto de Patrícia, uma cadela basenji. Curiosidade: a raça não late. Patrícia é muda.

A novelista mora com Patrícia num apartamento na avenida Atlântica, na praia de Copacabana, comprado em 1996 de um sheik do Kuait. O chão do apartamento é de mármore com azulejos orientais. A decoração árabe e os móveis do sheik foram mantidos.

Glória janta uma massa com recheio de berinjela. Levanta correndo da mesa para ver "América" no telão em frente a um sofá circular. "Tem química entre os dois", observa, ao ver Christiane Torloni e Floriano Peixoto iniciando um romance. "Essa entrada [da novela] ficou bacana, né? Outra coisa!".

Glória não consegue disfarçar a satisfação com os novos rumos de "América". Depois de uma queda-de-braço, ela conseguiu que a TV Globo substituísse Jayme Monjardin na direção da trama. "Eu não quero suscitar outra crise com minhas declarações. Mas o fato é que a novela que estava no ar não era a que eu estava escrevendo".

Intervalo. Glória comenta que a história escrita pelo autor não pode ser "traída" pelo diretor. "Não dá para contar a história da Branca de Neve com uma madrasta boazinha. Não pode colocar a Cinderela triste no baile." Fazendo um paralelo com cenas de Sol (Deborah Secco) dirigidas por Monjardim, a autora diz: "Ninguém atravessa o deserto chorando". As ambientações também desagradavam Glória: "Não dá para mostrar o Pantanal numa novela que se passa no interior de SP".

Glória elogia a nova trilha sonora. "É tudo para cima, você está vendo? Bota um violino, como era antes, para ver como é que fica...todo mundo triste!". O Ibope respondeu bem às mudanças. Depois de raspar nos 40 pontos, "América" tem registrado média de 48 pontos.

Escrever uma novela, diz a autora, "é uma empreitada grande. Você vende a sua vida por muitos meses". Nesses períodos, Glória não consegue ir ao cinema, nem namorar, nem ler livros (formada em história, é fã de Nelson Rodrigues, Dostoiévski e Flaubert). "O mínimo que você quer é reconhecer a novela que está escrevendo."

"América" termina. O celular de Glória começa a tocar. "Hello! Are you there?" repete a campainha do telefone. É o novo diretor, Marcelo Schechtman, comentando o capítulo. Na manhã seguinte, as três pesquisadoras que trabalham para a autora também ligam. Relatam o que já ouviram em filas de bancos, ônibus, nas ruas, enfim.

Elas têm também a missão de trazer elementos reais, dos EUA, da comunidade de cegos ou do subúrbio, para enriquecer a trama. A pesquisadora Sandra Regina, por exemplo, contou a Glória que no subúrbio existem agora os "taxi-dog". São motoristas que levam cachorros de madames ao cabeleireiro. Pode ser a nova profissão do pai de Sol, Mariano, vivido pelo ator Paulo Goulart.
bergamo@folhasp.com.br COM JOÃO LUIZ VIEIRA E DANIEL BERGAMASCO

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