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FERREIRA GULLAR
A coisa está branca
Embora todo mundo já tenha escrito sobre a tal cartilha que a Secretaria Especial de
Direitos Humanos do governo federal elaborou e editou, também
vou meter o meu bedelho no assunto. Vocês hão de lembrar que
sobre o papa eu não escrevi, que
de papa eu não entendo; de cartilha também não, mas querer nos
ensinar que pega mal usar expressões como "farinha do mesmo
saco" indica que esse pessoal do
Lula ou não tem mesmo o que fazer ou está a fim de nos encher o
saco (com perdão da expressão
politicamente incorreta).
Essa coisa de censurar palavras
e expressões nascidas do falar popular é uma mania que de vez em
quando aflora. Não faz muito,
surgiu uma onda exigindo que se
expurgassem dos dicionários palavras como "judiação" ou "judiar", sob o argumento de que são
expressões anti-semitas. Bastava
pensar um pouco para ver que
tais palavras não se referem aos
judeus, e sim a Judas Escariotes,
isto é, à malhação do Judas no Sábado de Aleluia. Judiar ou fazer
judiação é submeter alguém a
maus-tratos semelhantes aos que
a molecada faz com o boneco de
Judas.
Outra expressão que a ignorância rancorosa considera insulto
racista é "a coisa está preta", que,
na verdade, como se sabe, alude
ao acúmulo de nuvens negras no
céu no momento que precede as
tempestades. Assim, quando alguém pressente que as coisas estão se complicando, usa aquela
expressão. Pois acreditem vocês
que um conhecido meu, pessoa
talentosa, me disse que em sua casa está proibido dizer "a coisa está preta"; lá se diz "a coisa está
branca"! Pode?
Essa cartilha -que o governo
promete consertar, como se tal
coisa tivesse conserto- pode
abrir caminho para restrições à liberdade de expressão, se não em
termos de lei, mas por induzir
pais de família e professores a discriminar textos literários ou jornalísticos e, conseqüentemente,
seus autores. No que me toca, já
estou de orelha em pé, pois acabo
de lançar um livro para crianças
(!!) cujo título é "Dr. Urubu e Outras Fábulas". Para azar meu, o
poema que dá título ao livro começa assim: "Doutor Urubu, a
coisa está preta".
Temo ser levado ao Tribunal da
Inquisição por incorrer em duplo
delito, pois, além de usar a expressão condenada, ainda dou a
entender que a frase alude à cor
negra da ave, e logo que ave! Um
urubu, bicho repugnante, que só
come carniça! Adiantaria alegar
que não fui eu quem pintou o
urubu de preto? Minha sorte é
que vivemos numa democracia, e
o nosso povo, por índole, é pouco
afeito ao fanatismo desvairado,
em que pesem as exceções.
Exagero? Pode ser, mas, se exagero, é de propósito, para pôr à
mostra o que há de perigoso e
burro nesses defensores do politicamente correto, porque, se não
há o perigo da fogueira, há o perigo do império da burrice ir tomando conta do país. E tudo devidamente enfeitado de boas intenções.
Sim, porque, conforme alegou o
autor da cartilha, ela foi concebida com o propósito de resguardar
a suscetibilidade de brancos e negros, de judeus e muçulmanos, de
cearenses e baianos, de palhaços e
beatas... Até os comunistas foram
beneficiados sob o pretexto de terem sido vítimas de graves calúnias. Não sei se a Secretaria de Direitos Humanos acha natural
chamar a outros de fascistas ou
nazistas; quanto a acoimá-los de
vigaristas, creio que não, pois isso
ofenderia os vigários em geral.
Não posso afirmar se a cartilha
resguarda também a suscetibilidade dos chifrudos, dos pançudos,
dos narigudos, dos cabeludos e
dos cabeçudos; dos pirocudos,
acredito que não, pois isso é tido
como elogio. Mas e as moças de
pouca bunda e poucos seios (do
tipo Gisele Bündchen), que o pessoal apelida de "tábua"? E o gorduchos, apelidados de "bolão"?
Os magricelas, de "espeto"? E os
baixotes, chamados de "meia
porção"? Isso sem falar num respeitável senador da República a
quem seus confrades -acredito
que sem malícia- apelidaram
de "lapiseira".
Estou de acordo com que não se
deva tratar pessoa nenhuma por
apelidos depreciativos. Por exemplo, num papo com Bin Laden, eu
teria a cautela de não chamá-lo
de terrorista, especialmente se ele
estivesse acompanhado de um
homem-bomba. Do mesmo modo
agiria com o juiz Nicolau, a quem
nunca trataria de "meritíssimo
Lalau", embora certamente não
lhe revelasse a senha de meu cartão de crédito.
Como se vê, isso de falar politicamente correto envolve muitos
problemas, porque não se trata de
engessar apenas o humor (bom
ou mau) das pessoas, mas de engessar o próprio idioma. Falar, de
certo modo, é reinventar a língua,
já que o que se diz estava por ser
dito e, ao dizê-lo, damos-lhe uma
forma imprevisível até para nós
mesmos. Além disso, há pessoas
especialmente dotadas de verve,
que nos surpreendem (e a si próprias) com expressões às vezes irônicas, sarcásticas ou simplesmente engraçadas. Criam modos de
dizer inusitados, apelidos, ditos,
tiradas, que nos divertem e enriquecem o nosso falar cotidiano. É
que falar é um exercício de liberdade (para o bem ou para o mal),
que não cabe nos preceitos de
uma cartilha ou de um código de
censura.
Aliás, para terminar, sugiro que
se mudem os nomes de certos insetos como barata, formiga e piolho, por coincidirem lamentavelmente com os sobrenomes de algumas respeitáveis famílias brasileiras.
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