São Paulo, quinta-feira, 15 de junho de 2006

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NINA HORTA

Reflexões gastronômicas

Por que quem escreve sobre miúdos faz uma introdução e vai direto ao ponto quando o assunto é chocolate?

CHEGOU O último número da revista americana "Gastronomica". São quatro números por ano, é bonita e tem ótimos colaboradores. Quem se interessa? A editora, Darra Goldstein, já começa contando histórias. Foi se servir num bufê e ainda no começo da fila lhe deram um prato e um garfo. Pensou que só comeria coisinhas fáceis, garfais e, para sua surpresa, foi logo encontrando um rosado e sedutor rosbife em fatias grossas. Pegou assim mesmo, não resistiu à tentação, sentou-se num canto, pegou o pedaço de carne com o polegar e o indicador, com certeza fez força para não levantar o mindinho e nhoc, nhoc, acabou sua carne, encantada com a experiência nova. O irônico da coisa é que ela é obcecada por boas maneiras à mesa e pelos vários modos com os quais os homens através dos tempos têm levado a comida à boca. E acabou de organizar uma exposição de design de talheres americanos e europeus, de 1500 a 2005, em Nova York, no Cooper Hewitt - National Design Museum (www.cooperhewitt.org). É uma belíssima e interessante coleção, os americanos aplaudem e enchem as galerias, mas, contraditoriamente, a cada dia simplificam mais a vida e só querem comer com as mãos, ou com os dedos, como dizem. Finger food.
 
Betty Fussell, outra das colaboradoras deste número, dá um depoimento de sua vida pessoal. Cada coisa que punha na boca tinha uma história que ia até Adão e Eva ou até os Australopithecus. Percebeu que a história da comida é a história da humanidade. Para seu agrado, na última década muita gente percorreu esse caminho, apareceu um tsunami de trabalhos acadêmicos, a comida juntou-se aos outros assuntos, como sexo, morte, cinema e "como viver melhor num mundo que constantemente destruímos".
 
E a revista tem vários artigos sobre miúdos. Miúdos que causam suspeita, medo, nojo, alegria, prazer, indiscutivelmente um assunto polêmico. Muitas perguntas. Por que alguém que vai escrever sobre miúdos, vísceras, sempre faz uma introdução incentivando o leitor a apreciar estas iguarias e já vai direto ao ponto quando o assunto é chocolate? Será que, quando comemos "carne", estamos comendo algo impreciso, sem muita localização no mapa anatômico, enquanto língua, pé, rabo e joelho a gente sabe direitinho onde estão e a cara que têm? Por que as indústrias escondem os fatos anatômicos e os transformam em nuggets?
 
O astro televisivo Jamie Oliver teve o susto de sua vida quando tentou modificar a comida das escolas inglesas. As crianças fizeram cara feia para coxas de frango e só queriam saber de quadradinhos fritos. Ele teve a idéia de desconstruir um nugget passando todas as carnes que iam nele no processador. Deu aulas às crianças, mostrou de onde vinha cada pedaço, aproximou-as do alimento. A campanha rendeu frutos e, em março, o governo aprovou US$ 533 mil para a merenda escolar formada por ingredientes não maquiados.
 
Temos uma crítica do documentário de Jonathan Nossiter, "Mondovino", que já existe aqui em DVD. Eles não se importam muito com notícias frescas, é uma revista reflexiva, então, tanto faz a hora em que você reflete. Bem, isso tudo é um décimo da revista "Gastronomica". Tem fotos, ilustrações, críticas de livros, investigações de linguagem, estéticas, filosóficas. Querem mais? Em www.gastronomica.org.

ninahorta@uol.com.br

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